Abri os olhos muito devagar, a claridade
estava incomodando-me, aos poucos recordei o que tinha acontecido. Meu corpo
estava todo enfaixado, braços e pernas, eu ainda sentia a ardência dos cortes
em minha face. Fui colocado em um quarto, pequeno, porém aconchegante e sobre
uma cama macia com lençóis que continham um cheiro de flores do campo, acho que era lavanda.
De repente um homem entrou pela porta do
lado direito, parecia ter por volta de cinquenta anos, com seus cabelos
grisalhos e pele morena. Poucas pessoas no Canadá possuíam aquela tonalidade de
pele. Ele pareceu assustado quando me viu acordado, mas no minuto seguinte
mostrou-se feliz. Tentei falar, minha voz saiu rouca e inaudível, mais como um
ruído qualquer.
_ Como você está?_ ele me perguntou.
Eu estava muito confuso, lembrava-me de
ter saído das correntes impetuosas do rio Rideau e agora estava acordando
naquele lugar, forcei minha voz novamente.
_Quem é você? Onde estou? Como cheguei
aqui?
Aquele homem me surpreendeu quando sorriu
afetuosamente com minha torrente de perguntas.
_ Não esquente a cabeça meu rapaz, você
está em boas mãos. Achamos você na margem do rio, muito ferido três dias atrás
e o trouxemos para cá.
Três dias! Eu havia dormido por três dias
inteiros!
_ Me desculpe_ eu disse_ Como o senhor se
chama?
_ Perdão_ respondeu ele_ onde estão meus
modos? Meu nome é Adalberto Ramos, mas pode me chamar só de Ramos, se quiser, é
assim que todos os meus amigos e conhecidos me chamam.
Ele sorriu novamente, e chamou por outra
pessoa. Em pouco tempo uma jovem senhora entrou no quarto com uma bandeja
repleta de guloseimas, algumas daquelas espantaram-me porque havia muito tempo
que não conhecia alguém capaz de fazê-las.
_ Esta é minha esposa, Joana Maria Ramos_
ele recomeçou_ fique à vontade tome esse café que ela preparou, coma um pouco e
recupere as forças, mas não tenha pressa para sair, você está muito debilitado.
Nós estaremos por perto; qualquer insatisfação pode nos chamar ou se preferi
podemos levá-lo ao hospital.
Joana colocou a bandeja de alumínio
reluzente sobre a cama onde eu estava e, felizes, ambos deixaram o quarto,
fechando a porta atrás de si.
Na bandeja estavam um pedaço generoso de
broa de milho, eu nunca tinha conhecido alguém em todo o Canadá que fizesse tal
iguaria, mas não era só isso. Havia também bolo de chocolate, tapioca e café
com leite. Eu estava meio confuso, mas comi assim mesmo, depois coloquei a
bandeja na pequena mesinha ao lado da cama e me recostei para descansar, minha
cabeça estava latejando e eu ainda sentia o peso da materialização da magia no
meu corpo.
Devo ter dormido mais um tempo e quando
abri os olhos sentia-me um pouco melhor, levantei da cama mesmo contra a
vontade de meus músculos e andei até a porta, abri e do outro lado se revelava
um corredor com duas portas de cada lado e uma outra ao final, percebi que não
estava mais com minhas roupas e sim com uma espécie de pijama, provavelmente
era do Sr. Ramos, pois ficava largo em mim. Sai do quarto e avancei lentamente,
passei a mão na maçaneta da primeira porta, forcei-a um pouco e a porta se
abriu, tratava-se de um banheiro, pequeno, mas em ordem, fechei a porta e prossegui,
a segunda porta estava trancada, a terceira estava aberta e aparentemente era o
quarto do casal. Possuía uma cama grande, era recoberto com tapetes e cortinas;
todos os móveis estavam dispostos de uma forma bastante harmônica,
guarda-roupas, criado-mudo ao lado da cama, aliás, nos dois lados da cama que
estava forrada e com almofadas adornando. Obviamente o senhor e a senhora Ramos
gostavam de ler, pois sobre cada criado-mudo havia um livro, não resisti,
entrei no quarto e fui até o livro do lado direito.
O livro estava aberto e com um marcador de
páginas bem no centro, sentei-me sobre a cama e tomei o livro; de todos os
livros do mundo que eu gostaria que estivessem naquele quarto, o que estava era
justamente o único que eu pensava não poder me ajudar. A bíblia. Havia um texto
marcado em que estava escrito:
“Não temas porque Eu sou contigo; não te
assombres, porque eu sou o teu Deus; eu te fortaleço e te ajudo e te sustento
com a minha mão direita fiel”.
Durante a maior parte da minha vida eu
estudei aquele elemento; o fogo. Estudei sobre seu poder de destruição, sobre a
forma etérea de sua composição e por fim fui iniciado nos círculos que cuidam
da magia propriamente dita. Não foi nada fácil no princípio, as primeiras
etapas da preparação tem como intuito levar o iniciado ao limite de suas forças
físicas e mentais, felizmente meu aprendizado não havia sido ministrado por
qualquer um, não, ele era o melhor e eu o venerava até três dias atrás, Donovam
Draek, o grande, como ele mesmo costumava se intitular, aquele que usaria o
poder das casas unificadas da magia do fogo para reduzir a pó todos os seus
opositores, principalmente nossos principais inimigos os dominadores das águas,
os servos dos mares, que expandiam seus domínios em todo o Canadá, por ser um
país repleto de grandes lagos, mas não em Ottawa, aqui nessa cidade éramos nós
que mandávamos e eu fui usado pela Ordem como o anjo arauto da unificação, fui
investido de poder político para derrubar dogmas dos mestres das chamas e
legislar sobre novas regras que em sua maioria me eram passadas pelo próprio
Donovam, pois ele queria moldar a Ordem segundo sua imagem e vontade. Cacei um
a um os marginais da nova lei instituída pela Ordem, desde os membros renegados
até os inimigos declarados; comandei os exércitos do fogo nas incursões em
outros países a fim de erguermos postos avançados, desafiei mestres conhecidos
e desconhecidos de várias outras ordens e até mesmo da segunda vertente da
minha própria Ordem; não questionei, não retrocedi, nunca mostrei deslealdade
ou desrespeito. Por anos foi assim e meu tutor ganhava prestígio a cada dia,
tal qual eu, que passei a ser chamado de Arauto ou discípulo de Donovam.
O sentimento de vingança estava queimando
dentro do meu coração, não ficaria dessa forma, muito embora eu soubesse como
terminaria, provavelmente a Ordem pensasse que eu estava morto, afinal já há
três dias que estava desaparecido sendo cuidado por uma família de “bons
samaritanos”. Eu não estava certo do que fazer, mas ouvia alto e claro na minha
mente a voz da vingança dizendo: “Seu mestre matou você, a essa hora ele já
envenenou todas as pessoas de dentro dos círculos com quem você podia contar e
vai pedir outro discípulo, Vingue-se! Vingue-se! VINGUE-SE!”. Minhas mãos
formigavam e começaram a se aquecer, tive medo de causar mal à casa daquelas
pessoas e coloquei a bíblia sobre o local onde ela estava inicialmente, em
seguida saí do quarto e continuei pelo corredor.
Caminhei pelos cômodos restantes, mas
parecia não haver ninguém então fui para o quintal após passar pela cozinha;
estava acostumado com as paisagens magníficas que Ottawa possui e até mesmo já
vi as grandes paisagens do mundo, construídas pelas mãos do homem ou pelas mãos
da natureza, as pirâmides do Egito e o vale dos príncipes, Stonerenge ou a Ilha
de Páscoa, a grande muralha da China e a praça da paz celestial, o Corcovado e
o Cristo Redentor, o lago Ness e vários castelos do norte da Escócia, o mont
Blanc na Suíça, o Partenom, as chamas eternas do Monte Quimera, na Antália, sul
da Turquia; os templos de fogo do Zoroastrismo em Teerã, Irã; e tantas outras
maravilhas da natureza, mas por algum motivo quando sai daquela casa e olhei
para o grande lago claro e gelado cercado por belas e altas árvores e por um
campo verde que se estendia para o horizonte onde tocava o céu com algumas
nuvens que reluziam ao toque da luz solar daquela manhã, algo dentro de mim se
partiu, as palavras que tinha lido há poucos instantes retornaram para minha
mente e não saíram mais, “Não temas
porque eu sou contigo nem te assombres porque sou o teu Deus; eu te
fortaleço...”.
Essas palavras vinham de encontro aos meus
pensamentos mais profundos, pois meu grande medo era saber que depois de não
aceitar mais ser a foice da Ordem Vermelha eu teria de enfrentar meu antigo
mestre; talvez o maior mago dos dias atuais. Mas as palavras diziam para que eu
não temesse e juntamente com aquela paisagem diferenciada estavam
transmitindo-me uma serenidade que poucas vezes experimentei.
Por um curto espaço de tempo o espírito da
vingança calou sua profana boca dentro do meu ser, e eu soube que aquele era o
começo da maior batalha da minha vida.
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