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O Arauto x o Carrasco. -- Capítulo 15




Não parecia haver ninguém na casa, Alam percorreu os cômodos do andar de baixo, mas não viu nenhum dos donos do lugar, ignorou propositalmente a trilha feita pelas velas porque sabia que seu adversário o esperava no piso superior, queria deixá-lo esperando pelo confronto, afinal, se já tinha aguardado até aquele momento, poderia aguardar um pouco mais e queria usar de esperteza para tentar minar a confiança do inimigo. Se Phyros o estava esperando lá em cima, então deixaria ele pensando no que Alam podia estar tramando para demorar tanto a subir.

A verdade era que Alam não se sentia nem um pouco preparado para enfrentar o carrasco, mas não estava numa posição em que pudesse escolher o desdobramento dos fatos.

Subiu a escada um degrau de cada vez, com passos tão suaves que parecia ser um felino e não um homem; a mão esquerda segurando firmemente a bainha de sua espada enquanto a mão direita apertava contra o cabo da arma, já havia muito tempo que ele não praticava sua disciplina com lâmina, mas isso é uma coisa que não se esquece com facilidade. Além disso, da última vez em que tinha confrontado o carrasco, estava passando por uma intensa confusão mental, fato que não acontecia agora; não estava totalmente firmado em suas novas convicções, mas também não estava com o interior tão fora de prumo.

O andar superior também tinha as luzes apagadas, mas um pequeno detalhe fazia a diferença; as pequenas labaredas bruxuleantes das velas agora ardiam numa tonalidade diferente, eram azuladas e não mais amarelas como de costume. O carrasco já as tinha sob controle, domava as chamas como poucos e a qualquer momento poderia ordená-las para atacar.

Alam ouviu um barulho, na verdade parecia mais com um ruído do que qualquer outra coisa, um choramingo; pensou que poderia ser Adalberto, Eliana ou a sra. Joana. Por onde ele passava ia ascendendo as luzes, não gostaria de brigar com um homem tão maior do que ele e ainda no escuro; por outro lado tinha medo de mostrar àquelas pessoas tão bondosas o quanto ele era um homem maléfico, só sabia lutar de um modo e era eliminando rapidamente seus adversários.

Ao abrir a porta do quarto do casal, para sua surpresa viu toda a família amarrada e amordaçada sobre a cama, os olhos de todos estavam vitrificados de pavor, mas a visão de Eliana sobre a cama com as mãos voltadas para as costas, os tornozelos amarrados e em posição fetal foi demais para ele, aquilo e mais o Sr. e a Sra. Ramos também sob o mesmo tipo de prisão foi como ter um punhal empurrado contra o peito. Alam teve a sensação de que tinha trazido para dentro daquela casa um mal que não conseguiria rechaçar.

Antes de entrar, acendeu as luzes e olhou em volta; nenhum sinal do oponente. Ele caminhou até a cama e começou a libertar as pessoas, instintivamente começou por Eliana; desamarrou as mãos da moça e ela conseguiu por si só, desamarrar os tornozelos e retirar a mordaça da boca enquanto Alam retirava as amarras dos outros, Joana e depois Adalberto.

Em seguida Eliana o abraçou apavorada; um abraço longo e trêmulo que o jovem não retribuiu. Limitou-se a acariciar os cabelos da jovem, talvez por respeito aos pais dela que estavam ali ou talvez por ter sido pego tão desprevenido que realmente ficou sem reação.

Finalmente quando a moça o soltou ele disse:

_Onde ele está?

Os donos da casa ainda estavam tomados pelo pavor, mas Adalberto conseguia lidar um pouco melhor com isso do que sua esposa e filha; foi ele quem respondeu.

_Não sabemos. Ele nos amarrou aqui, fechou a porta e não o vimos mais.

Eliana ainda trêmula e com a voz visivelmente embargada interrompeu seu pai com uma tonelada de perguntas:

_Quem são essas pessoas? O que querem conosco? Por que nos prenderam dessa forma?

Adalberto tentou acalmar a filha, mas sua esposa também se perguntava as mesmas coisas e tudo aquilo parecia insano demais para uma família tão simples e de boa índole, gente cujo maior erro tinha sido retirar Alam de um riacho furioso e acolhê-lo em seu lar. Agora estavam sendo punidos sem motivo algum, pelo simples fato de serem pessoas extremamente aplicadas às boas obras e ao bem.

_Desculpe. _ Alam olhava fixamente para os olhos de Eliana e cria que nem em mil anos ela aceitaria tais desculpas_ Não era minha intenção trazer este mal para dentro de sua casa. Mil perdões.

O pedido era sincero, mas não soava firme. Talvez porque o medo pela primeira vez em dez anos estivesse livre para assombrar a mente do jovem; quando ainda era um mago, o que ele já não se considerava mais, tinha aprisionado aquele sentimento juntamente com uma pá de outras coisas e empurrado tudo para um canto obscuro de seu coração; mas agora que escolhera largar, pois tinha se arrependido profundamente de todas as coisas ruins que praticara, a magia; o medo tal como o amor voltaram a campear em seu coração e mente com uma força tão brutal como se quisessem recuperar o tempo perdido.

_Ele é um feiticeiro; um bruxo para ser mais exato.

Passos no corredor.

Joana se desesperou novamente:

_ Ele está voltando_ ela disse abraçando a filha num instinto de tentar protegê-la, como se Eliana ainda possuísse cinco anos de idade.

O homem apareceu frente ao limiar da porta, e ficou parado olhando para as quatro pessoas dentro do quarto, como se eles fossem pequenos animais confinados numa caixa, quase podia sentir o medo deles.

Alam sentiu seu coração trovejar dentro do peito; em outras épocas um confronto por mais difícil que fosse não seria recusado pelo arauto, o ímpeto dentro dele era capaz de impulsioná-lo contra qualquer adversário, mesmo que o outro fosse superior a ele. Agora, entretanto, ele descobriria se ainda podia lutar como antes, mas com uma motivação diferente. Em lugar do ímpeto o amor.

A voz do feiticeiro entrou no quarto antes dele:

_ Hoje só um de nós vai deixar esta casa com vida_ ele disse.

Eliana chorava copiosamente, mas tanto Adalberto quando Dona Joana agora permaneciam firmes; estavam aterrorizados é verdade, mas era como se no fundo uma esperança ainda estivesse viva dentro deles.

O bruxo falou novamente:

_Espero que você esteja em melhores condições do que no nosso último encontro. Foi decepcionante.

Alam tencionou o dedo polegar contra o exato lugar onde o cabo de sua espada se unia à bainha; todo o seu corpo se retesou, moveu a cabeça para o lado levemente e olhou de soslaio para seus amigos sobre a cama. Deu um passo para frente, esse era o sinal, aceitaria o confronto.

Não podia permitir que aquelas pessoas pagassem por seus erros, e de igual modo não deixaria que os fantasmas de seu passado viessem atormentá-los. Faria todo o possível para defendê-los e caso conseguisse sobreviver àquele confronto, não perderia mais muito tempo, procuraria Donovam e poria um fim em tudo aquilo. Para o bem ou para o mal.

O gigante deu um passo à frente também e entrou no quarto; teve que se curvar levemente para passar pelo umbral da porta em função de sua altura avantajada. Phyros se moveu tão rápido e com tanta força que pareceu um rinoceronte ao chocar-se contra Alam; ambos caíram sobre a cama da família com seus ocupantes ainda em cima dela tentando sair em velocidade. As mulheres gritaram.

No momento do encontrão, Alam tentou sacar de sua espada mais a velocidade do adversário foi muito superior a sua e o arauto se limitou a abraçar o oponente para que os dois caíssem sobre a cama e não apenas ele.

Os donos da casa se levantaram correndo e ouviram Alam dizendo que corressem para fora da casa. Mesmo não concordando em deixá-lo sozinho com o outro, não tiveram escolha; não sabiam o que fazer para ajudar e provavelmente seriam um estorvo para o jovem amigo se permanecessem ali. Deixaram o quarto e correram escada abaixo ainda sem saber ao certo o que fazer; chegando no andar inferior ouviam os barulhos provocados pelas coisas quebrando lá em cima.

_Telefone para a polícia pai_ propôs Eliana.

_Diga que nossa casa foi invadida_ emendou Joana.

Adalberto lançou mão do telefone e discou o mais rápido que pôde o número da emergência. Do outro lado a voz da atendente soou e junto com ela um alívio no coração do dono da casa, mas antes que pudesse relatar qual era a emergência na qual estava, foi interrompido por Alam rolando escada abaixo; uma queda cinematográfica que parecia capaz de quebrar todos os ossos do corpo do rapaz. Em seguida Phyros desceu em velocidade também.

Eliana e Joana correram para fora da sala e Adalberto soltou o telefone numa reação involuntária; pensou que seu amigo estivesse muito mal, mas agradeceu a Deus quando o viu levantar.

Alam se pôs de pé antes que o gigante caísse novamente sobre ele, tinha o supercílio aberto, por onde escoria sangue em grande quantidade. O feiticeiro saltou da metade superior da escada e foi parar muito próximo de Alam; quando os pés dele tocaram o chão, este pareceu tremer sob o efeito de um terremoto.

O arauto já tinha sua lâmina livre da capa protetora e se moveu com leveza e graça no exato momento da queda do carrasco, o corte foi profundo, na altura do abdômen, mas Phyros ignorou completamente, estava tomado pela excitação do combate, além do mais, tinha sido treinado para não perder a concentração em momento algum até que a peleja terminasse.

Alam esquivou-se de uma investida e novamente usou a lâmina em seu favor; o inimigo sentiu dessa vez e no mesmo momento as chamas azuis espalhadas pela sala ganharam volume. O gigante percebeu que enfrentar Alam com a espada em mãos era uma tarefa mais complicada do que ele inicialmente supunha.

_Devo admitir que você é muito mais hábil com essa espada do que sem ela; eu subestimei sua habilidade embora Donovam tenha me advertido quanto a isso.

O chão da sala foi tomado pelas chamas azuis que serpenteavam como se estivessem vivas e dotadas de vontade própria, o efeito do controle elemental de Phyros era rápido e muito extenso, logicamente ele conseguia desempenhar um confronto corpo a corpo e mesmo assim ordenar mentalmente seus encantamentos.

Alam não respondeu àquela provocação, não podia se dar ao luxo de perder o foco, afinal, vidas dependiam de sua atuação naquela sala. Estranhamente algumas coisas vinham à sua mente enquanto ele recuperava o fôlego e procurava estudar seu oponente.

A mente de Phyros continuava fechada como um cofre de chumbo e seus olhos não revelavam absolutamente nada; este investiu novamente contra Alam, como um rolo compressor. Alam também correu de encontro ao outro e numa manobra impensada, para não dizer suicida, disparou um arremate frontal contra seu inimigo. Phyros teve que usar de toda sua velocidade para se esquivar da ponta afiada da lâmina de Alam que tinha sido direcionada num ataque mortal contra o lado esquerdo do tórax. O arauto quase reproduzira com perfeição a um ataque de esgrima, numa estocada frontal que se tivesse obtido sucesso certamente teria terminado o confronto.

A lâmina passou na axila do carrasco e Alam virou a mão e puxou a espada, abrindo um corte agudo naquele local; pela primeira vez em muito tempo Phyros gritou acometido pela dor. Automaticamente Alam quando recolheu o ataque lançou outro; atirando-se sobre a lateral do oponente e tentando mais uma estocada mortal, agora com o pescoço do adversário como alvo. Phyros teve de curvar o máximo que pode sua coluna para trás a fim de não ser vitimado pela investida do arauto, mas rapidamente retornou à sua posição de ataque. Alam estava agora parcialmente às suas costas e ambos praticamente voltaram-se um para o outro ao mesmo tempo, embora a velocidade do carrasco fosse ligeiramente maior, este acertou Alam lançando-o ao chão.

_ Ainda não será hoje que você vai obter vantagem sobre mim_ disse o carrasco pressionando sua axila ferida._ Ainda tenho uma carta na manga e vou usá-la.

Alam já sabia do que se tratava; àquela altura parte dos móveis estavam em chamas e a tal carta era o próprio fogo que consumia lentamente todo o cômodo. Além de se tratar de uma forma poderosa de ataque, servia também para consumir todo e qualquer vestígio de sua presença ali, no final ele planejava que o fogo cuidasse em destruir toda a casa da família Ramos assim as autoridades nunca teriam condições de encontrar alguma evidência que os levassem a Phyros.

_ Você não pode concordar com Donovam e toda aquela loucura _disse finalmente o arauto.

Ao que o outro respondeu:

_ Não ligo a mínima para nada daquilo, tanto faz que tipo de governo a ordem terá; para mim só me importa cumprir meu papel e nesta noite é eliminar você e seus novos amigos.

Os móveis ardiam em chamas, televisão, poltronas, tapetes, estante e tudo o que havia ali, mas as chamas ainda não eram suficientemente fortes para incomodar Alam; Phyros embora dominasse o fogo como poucos, não tinha o poder de dar intensidade a ele, e isso era uma desvantagem, pois somente quando o fogo natural provocado pela combustão dos móveis e da própria sala estivesse ficando mais intenso é que ele conseguiria utilizá-lo em seu favor. Isso dava uma pequena margem de tempo para Alam tentar pôr um fim no confronto.

Alam pensava consigo mesmo:

“Se eu convocar chamas em quantidade suficiente para incinerar toda a sala, mas concentrá-las sobre o corpo do carrasco e ao mesmo tempo atacar com uma manobra bem executada terei alguma chance de finalizar isso rapidamente”.

A idéia era ao mesmo tempo ótima e péssima, o que separava um adjetivo do outro era o tempo; uma diferença curta de apenas alguns segundos. Alam poderia convocar chamas suficientes para destruir toda a casa e focalizá-las no corpo do inimigo tal como aconteceu com ele mesmo em sua própria residência e em seu próprio corpo no início da noite; com isso, Phyros teria que forçar seu domínio elemental para não ser consumido pelas chamas; levando em conta o grau de controle que ele possuía, não levaria mais do que alguns momentos. Porém, aqueles segundos de desatenção seriam acompanhados com uma saraivada de ataques com a lâmina e se o fogo não fizesse o trabalho, a espada faria.

Por outro lado, se Phyros dominasse as chamas e Alam não fosse rápido o suficiente para efetivar os ataques; todo aquele volume de fogo estaria à disposição do inimigo e certamente a balança do combate favoreceria ao outro. Era o clássico “ou tudo ou nada”; mas tinha um problema. O problema era que Alam tinha jurado nunca mais conjurar magia elemental, e agora estava em mais um dilema, afinal era para salvar a si mesmo e a família Ramos.

O carrasco já tinha percebido que havia uma chance de não sair vitorioso ali e tinha que fazer com que Alam se livrasse da espada; o corte na axila foi muito profundo e o estava incomodando sobremaneira, mas não estava demonstrando aquilo, o psicológico conta muito em batalhas como aquelas e não deixaria o jovem arauto perceber que tinha uma chance por menor que fosse.

Logo ele percebeu parte da estratégia do ex-aluno de Donovam; o jovem estava certamente se utilizando do ambiente em sua volta para ganhar uma vantagem competitiva no combate. A primeira vez que eles se enfrentaram foi em um espaço muito maior do que aquela pequena sala, o estacionamento onde Phyros se movia com muito mais rapidez e desenvoltura, mas dentro do pequeno cômodo da casa da família Ramos, onde as paredes eram, em relação com o estacionamento, muito menores e, logo, o gigante tinha que medir seus movimentos.

Alam por outro lado, podia mover-se com a mesma destreza de sempre, já tinha percebido certa dificuldade nos movimentos de seu inimigo e apoiara toda sua estratégia de confronto sobre aquela coluna. Usaria o espaço físico a seu favor e a dificuldade de se mover tornaria o oponente em um homem um tanto quanto mais desengonçado.

Phyros sempre enfrentava inimigos em lugares muito mais amplos, nunca tinha se dado conta deste fato até agora, era algo tão normal que jamais percebera, porém era uma fraqueza que poderia ser facilmente usada contra ele. Estava impressionado, porque enfrentou o arauto apenas uma vez e aquela única batalha fora o suficiente para que o jovem descobrisse um ponto fraco no gigante.

Naquele momento a mente de Phyros se abriu.

Alam sorriu por um instante e de modo quase sarcástico, percebeu no olhar do outro o que estava acontecendo.

_Você realmente é diferente dos outros_ falou o Carrasco_ conseguiu descobrir uma falha em mim que nem eu mesmo sabia.

Alam empunhou a espada com ambas as mãos e a lâmina refletia a claridade das chamas como se ela mesma fosse feita de material incandescente; o metal polido ora parecia feito de ouro, ora parecia feito de bronze, num efeito provocado pelas labaredas amareladas. Só então ele se deu conta de que as chamas já não estavam mais na cor azul, Phyros não as mantinha sob seu comando, obviamente descobrir tal falha em seu caráter o tinha desconcentrado ainda que momentaneamente.

_ Você ainda pode ir embora e deixar meus amigos em paz._disse Alam sem crer que seria atendido.

O gigante desabou numa gargalhada.

_ Você não acha que somente por saber uma de minhas fraquezas terá vantagem nesse embate; sei várias das suas e então acho que estamos quites.

_Pode vir. _Desafiou o Arauto.

A situação era a seguinte; o fogo começava a ganhar volume, e ambos tinham pouco tempo para dar um fim cada qual em seu oponente, Alam secretamente tinha decidido não invocar mais chamas para a batalha, fora uma decisão legítima que tomara dias atrás e não retrocederia, viveria o resto de seus dias sem utilizar nenhum tipo de magia, por mais simples que fosse.

Phyros, por outro lado, tentava blindar sua mente da leitura fria feita pelo arauto, e pela primeira vez não sabia se estava sendo bem sucedido.

_ É sua última chance, vá e deixe essa família em paz, eles não têm nada com você, Donovam ou a ordem; são gente boa e de coração muito puro, não representam perigo ou ameaça alguma para quem quer que seja._ Disse Alam mais uma vez.

O Carrasco fingiu estar ponderando, mas na verdade estava só brincando; e disse:

_ Sinto muito por você e por eles, mas ordens são ordens e quando eu terminar com você, eles serão os próximos _ A face dele se tornou sóbria, como se agora as coisas fossem ficar duras de verdade _ você sabe melhor do que ninguém, que Donovam não gosta de ser contrariado ou desobedecido, portanto, não vou cometer o mesmo erro que você.

Automaticamente um lançou-se contra o outro, as chamas voltaram a demonstrar a cor azul e saltaram na direção do arauto que por sua vez com a espada em punho, arremeteu contra o gigante com uma espécie de manobra marcial. O tempo foi somente o suficiente para que a lâmina perfurasse o ombro do carrasco e as labaredas azuladas tomaram conta do corpo do rapaz.

Phyros segurou a parte da lâmina que não adentrou em seu ombro e com um grito a tirou de sua própria carne, arremessando-a contra a parede em chamas.

A sala começou a estalar, parecia que o revestimento de madeira da sala estava perdendo força e obviamente a partir daquele momento havia o risco de parte do cômodo vir abaixo. Alam caiu no chão e rolou tentando se livrar das chamas azuis, em seguida bateu com as mãos espalmadas contra seu próprio corpo visando apagar o fogo, estava pouco se importando em ser atacado pelo gigante, mas não podia se deixar ser consumido; a espada, única esperança real de vencer o confronto, foi tomada de sua mão e agora jazia em algum canto da sala, mas o fogo já tinha alcançado o status de incêndio e estava cada vez mais difícil até mesmo respirar. A fumaça provocada pela combustão dos móveis e aparelhos eletro-eletrônicos inundava todo o cômodo; uma fumaça densa e escura que trazia consigo também uma grande quantidade de fuligem proveniente do revestimento de tacos de madeira do chão e paredes.

Alam se abaixou e com a mão direita em concha recoberta com a camisa tentou filtrar o ar que puxava para os pulmões, mas aquele artifício não era o bastante e ele continuava aspirando muita fumaça. O teto era relativamente baixo e agora era difícil até mesmo enxergar; uma cortina de fumaça permeada por línguas ardentes fazia divisão entre ele e o inimigo que podia estar em qualquer lugar. Finalmente todo o cômodo estava sendo consumido pelo fogo; olhou para cima e o teto do lugar parecia-se com um céu incandescente, rugindo, e as línguas de fogo eram como serpentes translúcidas entrando e saindo da matéria, minando sua composição sólida. Mas nada daquilo era o que parecia, Alam estava delirando; pior, estava se intoxicando com tanta fumaça entrando em seus pulmões.

_ Phyros! _Gritou.

Não houve nenhuma resposta. Onde ele poderia estar? De repente uma sombra surgiu por trás do jovem e o arremessou para outra parte da sala, de modo que se chocou contra a parede que quase cedeu. O chão já era brasa viva e a sombra era o carrasco.

Chamas vermelhas, amarelas, laranjas e azuis; todas juntas incinerando tudo em seu caminho. Alam se levantou e teve a visão obscurecida pela cortina de fumaça, ouviu algo vindo em sua direção, sabia quem era e não perderia a oportunidade de mais um ataque suicida. Abaixou-se mais uma vez e ouviu seu inimigo tossir em meio às trevas quentes e dançantes; Phyros era muito alto para fugir da fumaça, mesmo abaixado respiraria muito mais e se tudo corresse direito, logo seu grande oponente estaria tão tonto que já não seria mais um adversário de verdade.

A tosse forçou passagem pela garganta de Alam também e ele correu abaixado da forma que pôde, trocando de lugar para não ser novamente atacado.


***


Do lado de fora da casa, Adalberto e sua família permaneceram apreensivos desde o momento em que saíram; Joana e Eliana estavam abraçadas e aguardavam que algo ocorresse, mas não sabiam o quê. Esperavam que Alam fosse suficientemente hábil e estivesse pronto para enfrentar uma situação como aquela.

Por duas vezes Adalberto tentou retornar à casa, mas foi impedido por sua esposa e filha, elas não queriam que nada de ruim lhe acontecesse; estavam com muito medo por não saberem com quem exatamente estavam tratando.

Ouviram barulhos vindos da sala; eles estavam no jardim, a apenas alguns passos da porta de entrada para aquele cômodo. Os barulhos característicos demonstravam claramente que uma briga feroz estava se desenrolando lá dentro, parecia que havia um furacão destruindo todas as suas coisas, mas na verdade eles sabiam que era outra a força da natureza que estava agindo. O fogo apareceu pela porta e rapidamente ganhou volume, obviamente todo o cômodo estava imerso nas chamas e a fumaça saía aos montes como colunas rumo ao céu escuro e frio da noite.

_Oh! Meu Deus, minha casa!_ Joana não podia acreditar que um de seus maiores bens estivesse sendo destruído por aquele incêndio.

Eliana estava ajoelhada sobre a grama baixa e com lágrimas nos olhos observava atentamente aquela cena terrível. O pensamento dela estava dividido, em parte temia perder a casa e em parte temia perder Alam.

_Sai logo daí_ ela disse inconscientemente.

Adalberto estava parado um pouco mais à frente que sua família, mas tinha certeza que aquele jovem não seria vitimado pelo incêndio, não sabia ao certo como, mas acreditava nisso. Pedia a Deus que ajudasse o garoto.

Ele pensava em como as coisas tinham caminhado para um desfecho como aquele, de repente parecia que as coisas tinham resolvido se juntar para tirar tudo aquilo que lhe era caro e por um momento temeu por sua família, mas no mesmo instante lembrou-se que aquela cena, toda ela; na verdade não passava de uma leve brisa contraria e momentânea; já passara por muitas coisas na vida, e algumas até bem piores do que um incêndio. Logo, a certeza de que a realidade seria mudada novamente e o que parecia um momento ruim voltaria a ser como antes sufocou a dúvida. Por experiência própria Adalberto sabia que depois da tempestade sempre vem a bonança; o dia sempre retorna depois da noite, por mais escura que esta pareça.

_O menino vai conseguir_ ele disse olhando para a filha.

_Como o sr. sabe?_ rebateu ela meio trêmula.

_ Confie; apenas creia, ele vai conseguir.


***

Alam e Phyros haviam se esmurrado violentamente mais um punhado de vezes; estavam queimados, tossiam muito e agora cada um jazia em um canto distinto da sala embora um não conseguisse ver o outro; o carrasco tinha muito mais dificuldade de respirar; era um homem muito grande e agora uma outra coisa o estava incomodando, seus olhos ardiam sobremaneira e lacrimejavam sem parar; nunca antes tinha sentido aquela sensação. Sua visão estava turva e cada vez mais obliterada pela mistura quente de fuligem, fumaça e suor; a ardência aumentou na mesma proporção em que a respiração diminuiu.

Alam não ia ficar mais tempo ali dentro, não estava vendo seu adversário e temia ser pego desprevenido de alguma forma. Sabia que seu amigos o estavam esperando do lado de fora e num movimento rápido, mesmo estando abaixado junto ao chão, ele começou a engatinhar para a porta de saída. Ouviu phyros tossindo compulsivamente,  talvez o gigante estivesse sufocando; por um momento ele teve vontade de voltar e ajudá-lo, mas logo desistiu da idéia, se Phyros desmaiasse Alam não teria força para arrastá-lo para fora da casa em chamas; ademais, ainda temia que aquilo não passasse de um embuste, uma armadilha apelando para o lado sentimental do arauto que estava aflorando como nunca antes. Donovam provavelmente tinha conversado com o gigante e dito sobre o “ponto fraco” de seu aluno. A bondade.

Quando saiu da casa, correndo pela porta da frente e tossindo incontrolavelmente; Alam foi rapidamente recebido por Adalberto Ramos que correu ao seu encontro e o abraçou. O corpo do rapaz estava quente como se ele próprio possuísse uma temperatura corporal superior a quarenta graus.

_Graças a Deus!_ disse Adalberto deixando escapar um suspiro de alívio.

As roupas do ex-mago estavam sujas de cinzas, fuligem, sangue e suor; assim como o rosto dele, e antes que ele respondesse ao que Adalberto disse; a filha e a esposa do dono da casa chegaram correndo e o abraçaram também.

Eliana chorava e soluçava, e a mãe da moça acompanhava o marido em seus agradecimentos a Deus.

_ Estou bem; vamos sair daqui._ respondeu finalmente Alam.

Poucas vezes Alam tinha se sentido tão querido em sua vida.

_Onde está o outro? Perguntou Adalberto.

_Está lá dentro; não sei o que ele está tramando, mas vamos sair daqui agora mesmo.

Joana interpelou:

_Para aonde nós vamos?

_Para a minha casa.

Eliana tentou se controlar e perguntou com a voz embargada misturada ao choro:

_Mas e quanto a nossa casa? E quanto ao intruso lá dentro?

_ Ele não vai poder fazer nada; a única coisa que ele queria aqui era a mim e de alguma forma punir vocês pela ajuda que me deram_ Alam começou a andar na direção de seu carro que estava parado frente ao jardim da casa e puxava levemente tanto a Eliana quanto Adalberto e dona Joana os acompanhava, enquanto falava._ Vamos para minha casa e ficar lá até amanhã, no caminho ligamos para as autoridades e assim que eles vierem aqui, controlarem o incêndio e verificarem que não há mais perigo no lugar então voltamos.

Eliana insistiu:

_ Mas e se eles encontrarem aquele homem lá em casa? Se é que aquilo é um homem.

Alam respondeu:

_Não vão encontrar; Phyros não pode se dar ao luxo de ser preso ou detido por qualquer autoridade, e não é tolo de confrontá-los, afinal, os policiais usam armas e tudo que ele tem e o domínio do elemento fogo.

Alam passou a mão na calça desprendendo uma chave que pendia do cinto presa dentro de um pequeno invólucro de chumbo, destravou o carro desligando o alarme da Mercedes, abriu a porta o mais rápido que pôde e entrou. Os outros entraram tão rápido quanto ele; Eliana e sua mãe nos bancos traseiros e Adalberto no banco ao lado do motorista.

O carro saiu em velocidade rumo a residência do arauto. No caminho seus ocupantes sentiram o silêncio pesado e brutal até que Eliana percebendo e se sentindo incomodada com aquilo disse:

_ E se ele morreu?

_Quem?!_disse Alam.

_ Aquele homem. E se ele morreu lá em casa consumido pelo fogo ou sufocado pela fumaça?

Antes que Alam pudesse dizer qualquer coisa, o pai de Eliana se interpôs:

_ Se as autoridades encontrarem o corpo daquele homem em nossa casa, então diremos a verdade; diremos que ele invadiu nossa casa, nos amarrou e pôs fogo em tudo e diremos também que se não fosse Deus ter enviado Alam até lá para nos ajudar eles encontrariam quatro corpos ao invés de um.

O motorista sentiu o coração doer quando imaginou a cena. Mas não disse nada.

Eliana se calou.

Mas a mãe dela trouxe um novo questionamento:

_ O que faremos em seguida; será que teremos de nos mudar para que estas pessoas do mal não voltem para nos punir sabe Deus pelo quê. Não fizemos nada de errado.

Alam sentia-se tão culpado que mal conseguia falar; a vergonha dominava seus pensamentos e novamente foi Adalberto quem respondeu:

_Vamos deixar que o futuro aconteça quando tiver que acontecer, Deus vai tomar todas as providências, se tivermos de nos mudar então nos mudaremos; o que tem demais nisso? Tudo que havia em nossa casa pode ser comprado novamente, trabalharemos duro como sempre fizemos, somos uma família e ser uma família é estar unido principalmente em momentos como este. Tudo vai dar certo.

Adalberto virou-se para trás e segurou a mão de sua esposa, em seguida a de sua filha e disse:

_ Vai dar certo.

Depois virou para frente e colocando a mão no ombro de Alam disse:

_No que me diz respeito, você é parte dessa família também, não estou falando de laços de sangue, mas sim de laços de amor. Sinto-me responsável por você desde que te tirei do rio.

O arauto dirigia tentando segurar as lágrimas, e sentiu as mãos de Eliana e dona Joana também repousarem em seus ombros. Naquele momento ele decidiu que aquela família tão diferente de todas que ele já tinha conhecido não precisaria se mudar e nem teria prejuízo algum em suas vidas. Alam decidiu que iria procurar Cortez e apoiá-lo para colocar um fim nos planos de Donovam; sabia que Cortez não queria sua morte, queria apenas vencer abertamente a política de Donovam para ser elevado a um maior nível de honra e prestígio.

Além disso, Alam decidiu que podia muito bem comprar tudo o que aquela família precisasse para sua vida seguir como antes e os presentearia com muito mais, como uma retribuição da bondade que mostraram para com ele.


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