Não parecia haver ninguém na casa, Alam
percorreu os cômodos do andar de baixo, mas não viu nenhum dos donos do lugar,
ignorou propositalmente a trilha feita pelas velas porque sabia que seu
adversário o esperava no piso superior, queria deixá-lo esperando pelo
confronto, afinal, se já tinha aguardado até aquele momento, poderia aguardar
um pouco mais e queria usar de esperteza para tentar minar a confiança do
inimigo. Se Phyros o estava esperando lá em cima, então deixaria ele pensando
no que Alam podia estar tramando para demorar tanto a subir.
A verdade era que Alam não se sentia nem
um pouco preparado para enfrentar o carrasco, mas não estava numa posição em
que pudesse escolher o desdobramento dos fatos.
Subiu a escada um degrau de cada vez, com
passos tão suaves que parecia ser um felino e não um homem; a mão esquerda
segurando firmemente a bainha de sua espada enquanto a mão direita apertava
contra o cabo da arma, já havia muito tempo que ele não praticava sua
disciplina com lâmina, mas isso é uma coisa que não se esquece com facilidade.
Além disso, da última vez em que tinha confrontado o carrasco, estava passando
por uma intensa confusão mental, fato que não acontecia agora; não estava
totalmente firmado em suas novas convicções, mas também não estava com o
interior tão fora de prumo.
O andar superior também tinha as luzes
apagadas, mas um pequeno detalhe fazia a diferença; as pequenas labaredas
bruxuleantes das velas agora ardiam numa tonalidade diferente, eram azuladas e
não mais amarelas como de costume. O carrasco já as tinha sob controle, domava
as chamas como poucos e a qualquer momento poderia ordená-las para atacar.
Alam ouviu um barulho, na verdade parecia
mais com um ruído do que qualquer outra coisa, um choramingo; pensou que
poderia ser Adalberto, Eliana ou a sra. Joana. Por onde ele passava ia
ascendendo as luzes, não gostaria de brigar com um homem tão maior do que ele e
ainda no escuro; por outro lado tinha medo de mostrar àquelas pessoas tão
bondosas o quanto ele era um homem maléfico, só sabia lutar de um modo e era
eliminando rapidamente seus adversários.
Ao abrir a porta do quarto do casal, para
sua surpresa viu toda a família amarrada e amordaçada sobre a cama, os olhos de
todos estavam vitrificados de pavor, mas a visão de Eliana sobre a cama com as
mãos voltadas para as costas, os tornozelos amarrados e em posição fetal foi
demais para ele, aquilo e mais o Sr. e a Sra. Ramos também sob o mesmo tipo de
prisão foi como ter um punhal empurrado contra o peito. Alam teve a sensação de
que tinha trazido para dentro daquela casa um mal que não conseguiria rechaçar.
Antes de entrar, acendeu as luzes e olhou
em volta; nenhum sinal do oponente. Ele caminhou até a cama e começou a
libertar as pessoas, instintivamente começou por Eliana; desamarrou as mãos da
moça e ela conseguiu por si só, desamarrar os tornozelos e retirar a mordaça da
boca enquanto Alam retirava as amarras dos outros, Joana e depois Adalberto.
Em seguida Eliana o abraçou apavorada; um
abraço longo e trêmulo que o jovem não retribuiu. Limitou-se a acariciar os
cabelos da jovem, talvez por respeito aos pais dela que estavam ali ou talvez
por ter sido pego tão desprevenido que realmente ficou sem reação.
Finalmente quando a moça o soltou ele
disse:
_Onde ele está?
Os donos da casa ainda estavam tomados
pelo pavor, mas Adalberto conseguia lidar um pouco melhor com isso do que sua
esposa e filha; foi ele quem respondeu.
_Não sabemos. Ele nos amarrou aqui, fechou
a porta e não o vimos mais.
Eliana ainda trêmula e com a voz
visivelmente embargada interrompeu seu pai com uma tonelada de perguntas:
_Quem são essas pessoas? O que querem
conosco? Por que nos prenderam dessa forma?
Adalberto tentou acalmar a filha, mas sua
esposa também se perguntava as mesmas coisas e tudo aquilo parecia insano
demais para uma família tão simples e de boa índole, gente cujo maior erro
tinha sido retirar Alam de um riacho furioso e acolhê-lo em seu lar. Agora
estavam sendo punidos sem motivo algum, pelo simples fato de serem pessoas
extremamente aplicadas às boas obras e ao bem.
_Desculpe. _ Alam olhava fixamente para os
olhos de Eliana e cria que nem em mil anos ela aceitaria tais desculpas_ Não
era minha intenção trazer este mal para dentro de sua casa. Mil perdões.
O pedido era sincero, mas não soava firme.
Talvez porque o medo pela primeira vez em dez anos estivesse livre para
assombrar a mente do jovem; quando ainda era um mago, o que ele já não se
considerava mais, tinha aprisionado aquele sentimento juntamente com uma pá de
outras coisas e empurrado tudo para um canto obscuro de seu coração; mas agora
que escolhera largar, pois tinha se arrependido profundamente de todas as
coisas ruins que praticara, a magia; o medo tal como o amor voltaram a campear
em seu coração e mente com uma força tão brutal como se quisessem recuperar o
tempo perdido.
_Ele é um feiticeiro; um bruxo para ser
mais exato.
Passos no corredor.
Joana se desesperou novamente:
_ Ele está voltando_ ela disse abraçando a
filha num instinto de tentar protegê-la, como se Eliana ainda possuísse cinco
anos de idade.
O homem apareceu frente ao limiar da
porta, e ficou parado olhando para as quatro pessoas dentro do quarto, como se
eles fossem pequenos animais confinados numa caixa, quase podia sentir o medo
deles.
Alam sentiu seu coração trovejar dentro do
peito; em outras épocas um confronto por mais difícil que fosse não seria
recusado pelo arauto, o ímpeto dentro dele era capaz de impulsioná-lo contra
qualquer adversário, mesmo que o outro fosse superior a ele. Agora, entretanto,
ele descobriria se ainda podia lutar como antes, mas com uma motivação
diferente. Em lugar do ímpeto o amor.
A voz do feiticeiro entrou no quarto antes
dele:
_ Hoje só um de nós vai deixar esta casa
com vida_ ele disse.
Eliana chorava copiosamente, mas tanto
Adalberto quando Dona Joana agora permaneciam firmes; estavam aterrorizados é
verdade, mas era como se no fundo uma esperança ainda estivesse viva dentro
deles.
O bruxo falou novamente:
_Espero que você esteja em melhores
condições do que no nosso último encontro. Foi decepcionante.
Alam tencionou o dedo polegar contra o
exato lugar onde o cabo de sua espada se unia à bainha; todo o seu corpo se
retesou, moveu a cabeça para o lado levemente e olhou de soslaio para seus
amigos sobre a cama. Deu um passo para frente, esse era o sinal, aceitaria o
confronto.
Não podia permitir que aquelas pessoas
pagassem por seus erros, e de igual modo não deixaria que os fantasmas de seu
passado viessem atormentá-los. Faria todo o possível para defendê-los e caso
conseguisse sobreviver àquele confronto, não perderia mais muito tempo,
procuraria Donovam e poria um fim em tudo aquilo. Para o bem ou para o mal.
O gigante deu um passo à frente também e
entrou no quarto; teve que se curvar levemente para passar pelo umbral da porta
em função de sua altura avantajada. Phyros se moveu tão rápido e com tanta
força que pareceu um rinoceronte ao chocar-se contra Alam; ambos caíram sobre a
cama da família com seus ocupantes ainda em cima dela tentando sair em
velocidade. As mulheres gritaram.
No momento do encontrão, Alam tentou sacar
de sua espada mais a velocidade do adversário foi muito superior a sua e o
arauto se limitou a abraçar o oponente para que os dois caíssem sobre a cama e
não apenas ele.
Os donos da casa se levantaram correndo e
ouviram Alam dizendo que corressem para fora da casa. Mesmo não concordando em
deixá-lo sozinho com o outro, não tiveram escolha; não sabiam o que fazer para
ajudar e provavelmente seriam um estorvo para o jovem amigo se permanecessem
ali. Deixaram o quarto e correram escada abaixo ainda sem saber ao certo o que
fazer; chegando no andar inferior ouviam os barulhos provocados pelas coisas
quebrando lá em cima.
_Telefone para a polícia pai_ propôs
Eliana.
_Diga que nossa casa foi invadida_ emendou
Joana.
Adalberto lançou mão do telefone e discou
o mais rápido que pôde o número da emergência. Do outro lado a voz da atendente
soou e junto com ela um alívio no coração do dono da casa, mas antes que
pudesse relatar qual era a emergência na qual estava, foi interrompido por Alam
rolando escada abaixo; uma queda cinematográfica que parecia capaz de quebrar
todos os ossos do corpo do rapaz. Em seguida Phyros desceu em velocidade também.
Eliana e Joana correram para fora da sala
e Adalberto soltou o telefone numa reação involuntária; pensou que seu amigo
estivesse muito mal, mas agradeceu a Deus quando o viu levantar.
Alam se pôs de pé antes que o gigante
caísse novamente sobre ele, tinha o supercílio aberto, por onde escoria sangue
em grande quantidade. O feiticeiro saltou da metade superior da escada e foi
parar muito próximo de Alam; quando os pés dele tocaram o chão, este pareceu
tremer sob o efeito de um terremoto.
O arauto já tinha sua lâmina livre da capa
protetora e se moveu com leveza e graça no exato momento da queda do carrasco,
o corte foi profundo, na altura do abdômen, mas Phyros ignorou completamente,
estava tomado pela excitação do combate, além do mais, tinha sido treinado para
não perder a concentração em momento algum até que a peleja terminasse.
Alam esquivou-se de uma investida e
novamente usou a lâmina em seu favor; o inimigo sentiu dessa vez e no mesmo momento
as chamas azuis espalhadas pela sala ganharam volume. O gigante percebeu que
enfrentar Alam com a espada em mãos era uma tarefa mais complicada do que ele
inicialmente supunha.
_Devo admitir que você é muito mais hábil
com essa espada do que sem ela; eu subestimei sua habilidade embora Donovam
tenha me advertido quanto a isso.
O chão da sala foi tomado pelas chamas
azuis que serpenteavam como se estivessem vivas e dotadas de vontade própria, o
efeito do controle elemental de Phyros era rápido e muito extenso, logicamente
ele conseguia desempenhar um confronto corpo a corpo e mesmo assim ordenar
mentalmente seus encantamentos.
Alam não respondeu àquela provocação, não
podia se dar ao luxo de perder o foco, afinal, vidas dependiam de sua atuação
naquela sala. Estranhamente algumas coisas vinham à sua mente enquanto ele
recuperava o fôlego e procurava estudar seu oponente.
A mente de Phyros continuava fechada como
um cofre de chumbo e seus olhos não revelavam absolutamente nada; este investiu
novamente contra Alam, como um rolo compressor. Alam também correu de encontro
ao outro e numa manobra impensada, para não dizer suicida, disparou um arremate
frontal contra seu inimigo. Phyros teve que usar de toda sua velocidade para se
esquivar da ponta afiada da lâmina de Alam que tinha sido direcionada num
ataque mortal contra o lado esquerdo do tórax. O arauto quase reproduzira com
perfeição a um ataque de esgrima, numa estocada frontal que se tivesse obtido
sucesso certamente teria terminado o confronto.
A lâmina passou na axila do carrasco e
Alam virou a mão e puxou a espada, abrindo um corte agudo naquele local; pela
primeira vez em muito tempo Phyros gritou acometido pela dor. Automaticamente
Alam quando recolheu o ataque lançou outro; atirando-se sobre a lateral do
oponente e tentando mais uma estocada mortal, agora com o pescoço do adversário
como alvo. Phyros teve de curvar o máximo que pode sua coluna para trás a fim
de não ser vitimado pela investida do arauto, mas rapidamente retornou à sua
posição de ataque. Alam estava agora parcialmente às suas costas e ambos
praticamente voltaram-se um para o outro ao mesmo tempo, embora a velocidade do
carrasco fosse ligeiramente maior, este acertou Alam lançando-o ao chão.
_ Ainda não será hoje que você vai obter
vantagem sobre mim_ disse o carrasco pressionando sua axila ferida._ Ainda
tenho uma carta na manga e vou usá-la.
Alam já sabia do que se tratava; àquela
altura parte dos móveis estavam em chamas e a tal carta era o próprio fogo que
consumia lentamente todo o cômodo. Além de se tratar de uma forma poderosa de
ataque, servia também para consumir todo e qualquer vestígio de sua presença
ali, no final ele planejava que o fogo cuidasse em destruir toda a casa da
família Ramos assim as autoridades nunca teriam condições de encontrar alguma
evidência que os levassem a Phyros.
_ Você não pode concordar com Donovam e
toda aquela loucura _disse finalmente o arauto.
Ao que o outro respondeu:
_ Não ligo a mínima para nada daquilo,
tanto faz que tipo de governo a ordem terá; para mim só me importa cumprir meu
papel e nesta noite é eliminar você e seus novos amigos.
Os móveis ardiam em chamas, televisão,
poltronas, tapetes, estante e tudo o que havia ali, mas as chamas ainda não
eram suficientemente fortes para incomodar Alam; Phyros embora dominasse o fogo
como poucos, não tinha o poder de dar intensidade a ele, e isso era uma
desvantagem, pois somente quando o fogo natural provocado pela combustão dos
móveis e da própria sala estivesse ficando mais intenso é que ele conseguiria
utilizá-lo em seu favor. Isso dava uma pequena margem de tempo para Alam tentar
pôr um fim no confronto.
Alam pensava consigo mesmo:
“Se eu convocar chamas em quantidade
suficiente para incinerar toda a sala, mas concentrá-las sobre o corpo do carrasco
e ao mesmo tempo atacar com uma manobra bem executada terei alguma chance de
finalizar isso rapidamente”.
A idéia era ao mesmo tempo ótima e
péssima, o que separava um adjetivo do outro era o tempo; uma diferença curta
de apenas alguns segundos. Alam poderia convocar chamas suficientes para
destruir toda a casa e focalizá-las no corpo do inimigo tal como aconteceu com
ele mesmo em sua própria residência e em seu próprio corpo no início da noite;
com isso, Phyros teria que forçar seu domínio elemental para não ser consumido
pelas chamas; levando em conta o grau de controle que ele possuía, não levaria
mais do que alguns momentos. Porém, aqueles segundos de desatenção seriam
acompanhados com uma saraivada de ataques com a lâmina e se o fogo não fizesse
o trabalho, a espada faria.
Por outro lado, se Phyros dominasse as
chamas e Alam não fosse rápido o suficiente para efetivar os ataques; todo
aquele volume de fogo estaria à disposição do inimigo e certamente a balança do
combate favoreceria ao outro. Era o clássico “ou tudo ou nada”; mas tinha um
problema. O problema era que Alam tinha jurado nunca mais conjurar magia
elemental, e agora estava em mais um dilema, afinal era para salvar a si mesmo
e a família Ramos.
O carrasco já tinha percebido que havia uma
chance de não sair vitorioso ali e tinha que fazer com que Alam se livrasse da
espada; o corte na axila foi muito profundo e o estava incomodando
sobremaneira, mas não estava demonstrando aquilo, o psicológico conta muito em
batalhas como aquelas e não deixaria o jovem arauto perceber que tinha uma
chance por menor que fosse.
Logo ele percebeu parte da estratégia do
ex-aluno de Donovam; o jovem estava certamente se utilizando do ambiente em sua
volta para ganhar uma vantagem competitiva no combate. A primeira vez que eles
se enfrentaram foi em um espaço muito maior do que aquela pequena sala, o
estacionamento onde Phyros se movia com muito mais rapidez e desenvoltura, mas
dentro do pequeno cômodo da casa da família Ramos, onde as paredes eram, em
relação com o estacionamento, muito menores e, logo, o gigante tinha que medir
seus movimentos.
Alam por outro lado, podia mover-se com a
mesma destreza de sempre, já tinha percebido certa dificuldade nos movimentos
de seu inimigo e apoiara toda sua estratégia de confronto sobre aquela coluna.
Usaria o espaço físico a seu favor e a dificuldade de se mover tornaria o
oponente em um homem um tanto quanto mais desengonçado.
Phyros sempre enfrentava inimigos em
lugares muito mais amplos, nunca tinha se dado conta deste fato até agora, era
algo tão normal que jamais percebera, porém era uma fraqueza que poderia ser
facilmente usada contra ele. Estava impressionado, porque enfrentou o arauto
apenas uma vez e aquela única batalha fora o suficiente para que o jovem descobrisse
um ponto fraco no gigante.
Naquele momento a mente de Phyros se abriu.
Alam sorriu por um instante e de modo
quase sarcástico, percebeu no olhar do outro o que estava acontecendo.
_Você realmente é diferente dos outros_
falou o Carrasco_ conseguiu descobrir uma falha em mim que nem eu mesmo sabia.
Alam empunhou a espada com ambas as mãos e
a lâmina refletia a claridade das chamas como se ela mesma fosse feita de
material incandescente; o metal polido ora parecia feito de ouro, ora parecia
feito de bronze, num efeito provocado pelas labaredas amareladas. Só então ele
se deu conta de que as chamas já não estavam mais na cor azul, Phyros não as
mantinha sob seu comando, obviamente descobrir tal falha em seu caráter o tinha
desconcentrado ainda que momentaneamente.
_ Você ainda pode ir embora e deixar meus
amigos em paz._disse Alam sem crer que seria atendido.
O gigante desabou numa gargalhada.
_ Você não acha que somente por saber uma
de minhas fraquezas terá vantagem nesse embate; sei várias das suas e então
acho que estamos quites.
_Pode vir. _Desafiou o Arauto.
A situação era a seguinte; o fogo começava
a ganhar volume, e ambos tinham pouco tempo para dar um fim cada qual em seu
oponente, Alam secretamente tinha decidido não invocar mais chamas para a batalha,
fora uma decisão legítima que tomara dias atrás e não retrocederia, viveria o
resto de seus dias sem utilizar nenhum tipo de magia, por mais simples que
fosse.
Phyros, por outro lado, tentava blindar
sua mente da leitura fria feita pelo arauto, e pela primeira vez não sabia se
estava sendo bem sucedido.
_ É sua última chance, vá e deixe essa
família em paz, eles não têm nada com você, Donovam ou a ordem; são gente boa e
de coração muito puro, não representam perigo ou ameaça alguma para quem quer
que seja._ Disse Alam mais uma vez.
O Carrasco fingiu estar ponderando, mas na
verdade estava só brincando; e disse:
_ Sinto muito por você e por eles, mas
ordens são ordens e quando eu terminar com você, eles serão os próximos _ A
face dele se tornou sóbria, como se agora as coisas fossem ficar duras de
verdade _ você sabe melhor do que ninguém, que Donovam não gosta de ser
contrariado ou desobedecido, portanto, não vou cometer o mesmo erro que você.
Automaticamente um lançou-se contra o
outro, as chamas voltaram a demonstrar a cor azul e saltaram na direção do
arauto que por sua vez com a espada em punho, arremeteu contra o gigante com
uma espécie de manobra marcial. O tempo foi somente o suficiente para que a
lâmina perfurasse o ombro do carrasco e as labaredas azuladas tomaram conta do
corpo do rapaz.
Phyros segurou a parte da lâmina que não
adentrou em seu ombro e com um grito a tirou de sua própria carne,
arremessando-a contra a parede em chamas.
A sala começou a estalar, parecia que o
revestimento de madeira da sala estava perdendo força e obviamente a partir
daquele momento havia o risco de parte do cômodo vir abaixo. Alam caiu no chão
e rolou tentando se livrar das chamas azuis, em seguida bateu com as mãos
espalmadas contra seu próprio corpo visando apagar o fogo, estava pouco se
importando em ser atacado pelo gigante, mas não podia se deixar ser consumido;
a espada, única esperança real de vencer o confronto, foi tomada de sua mão e
agora jazia em algum canto da sala, mas o fogo já tinha alcançado o status de
incêndio e estava cada vez mais difícil até mesmo respirar. A fumaça provocada
pela combustão dos móveis e aparelhos eletro-eletrônicos inundava todo o
cômodo; uma fumaça densa e escura que trazia consigo também uma grande
quantidade de fuligem proveniente do revestimento de tacos de madeira do chão e
paredes.
Alam se abaixou e com a mão direita em
concha recoberta com a camisa tentou filtrar o ar que puxava para os pulmões,
mas aquele artifício não era o bastante e ele continuava aspirando muita
fumaça. O teto era relativamente baixo e agora era difícil até mesmo enxergar;
uma cortina de fumaça permeada por línguas ardentes fazia divisão entre ele e o
inimigo que podia estar em qualquer lugar. Finalmente todo o cômodo estava
sendo consumido pelo fogo; olhou para cima e o teto do lugar parecia-se com um
céu incandescente, rugindo, e as línguas de fogo eram como serpentes
translúcidas entrando e saindo da matéria, minando sua composição sólida. Mas
nada daquilo era o que parecia, Alam estava delirando; pior, estava se
intoxicando com tanta fumaça entrando em seus pulmões.
_ Phyros! _Gritou.
Não houve nenhuma resposta. Onde ele
poderia estar? De repente uma sombra surgiu por trás do jovem e o arremessou
para outra parte da sala, de modo que se chocou contra a parede que quase
cedeu. O chão já era brasa viva e a sombra era o carrasco.
Chamas vermelhas, amarelas, laranjas e
azuis; todas juntas incinerando tudo em seu caminho. Alam se levantou e teve a
visão obscurecida pela cortina de fumaça, ouviu algo vindo em sua direção,
sabia quem era e não perderia a oportunidade de mais um ataque suicida.
Abaixou-se mais uma vez e ouviu seu inimigo tossir em meio às trevas quentes e
dançantes; Phyros era muito alto para fugir da fumaça, mesmo abaixado
respiraria muito mais e se tudo corresse direito, logo seu grande oponente
estaria tão tonto que já não seria mais um adversário de verdade.
A tosse forçou passagem pela garganta de
Alam também e ele correu abaixado da forma que pôde, trocando de lugar para não
ser novamente atacado.
***
Do lado de fora da casa, Adalberto e sua
família permaneceram apreensivos desde o momento em que saíram; Joana e Eliana
estavam abraçadas e aguardavam que algo ocorresse, mas não sabiam o quê.
Esperavam que Alam fosse suficientemente hábil e estivesse pronto para
enfrentar uma situação como aquela.
Por duas vezes Adalberto tentou retornar à
casa, mas foi impedido por sua esposa e filha, elas não queriam que nada de
ruim lhe acontecesse; estavam com muito medo por não saberem com quem
exatamente estavam tratando.
Ouviram barulhos vindos da sala; eles
estavam no jardim, a apenas alguns passos da porta de entrada para aquele
cômodo. Os barulhos característicos demonstravam claramente que uma briga feroz
estava se desenrolando lá dentro, parecia que havia um furacão destruindo todas
as suas coisas, mas na verdade eles sabiam que era outra a força da natureza
que estava agindo. O fogo apareceu pela porta e rapidamente ganhou volume, obviamente
todo o cômodo estava imerso nas chamas e a fumaça saía aos montes como colunas
rumo ao céu escuro e frio da noite.
_Oh! Meu Deus, minha casa!_ Joana não
podia acreditar que um de seus maiores bens estivesse sendo destruído por
aquele incêndio.
Eliana estava ajoelhada sobre a grama
baixa e com lágrimas nos olhos observava atentamente aquela cena terrível. O
pensamento dela estava dividido, em parte temia perder a casa e em parte temia
perder Alam.
_Sai logo daí_ ela disse inconscientemente.
Adalberto estava parado um pouco mais à
frente que sua família, mas tinha certeza que aquele jovem não seria vitimado
pelo incêndio, não sabia ao certo como, mas acreditava nisso. Pedia a Deus que
ajudasse o garoto.
Ele pensava em como as coisas tinham
caminhado para um desfecho como aquele, de repente parecia que as coisas tinham
resolvido se juntar para tirar tudo aquilo que lhe era caro e por um momento
temeu por sua família, mas no mesmo instante lembrou-se que aquela cena, toda
ela; na verdade não passava de uma leve brisa contraria e momentânea; já
passara por muitas coisas na vida, e algumas até bem piores do que um incêndio.
Logo, a certeza de que a realidade seria mudada novamente e o que parecia um
momento ruim voltaria a ser como antes sufocou a dúvida. Por experiência
própria Adalberto sabia que depois da tempestade sempre vem a bonança; o dia
sempre retorna depois da noite, por mais escura que esta pareça.
_O menino vai conseguir_ ele disse olhando
para a filha.
_Como o sr. sabe?_ rebateu ela meio
trêmula.
_ Confie; apenas creia, ele vai conseguir.
***
Alam e Phyros haviam se esmurrado
violentamente mais um punhado de vezes; estavam queimados, tossiam muito e
agora cada um jazia em um canto distinto da sala embora um não conseguisse ver
o outro; o carrasco tinha muito mais dificuldade de respirar; era um homem
muito grande e agora uma outra coisa o estava incomodando, seus olhos ardiam
sobremaneira e lacrimejavam sem parar; nunca antes tinha sentido aquela
sensação. Sua visão estava turva e cada vez mais obliterada pela mistura quente
de fuligem, fumaça e suor; a ardência aumentou na mesma proporção em que a
respiração diminuiu.
Alam não ia ficar mais tempo ali dentro,
não estava vendo seu adversário e temia ser pego desprevenido de alguma forma.
Sabia que seu amigos o estavam esperando do lado de fora e num movimento
rápido, mesmo estando abaixado junto ao chão, ele começou a engatinhar para a
porta de saída. Ouviu phyros tossindo compulsivamente, talvez o
gigante estivesse sufocando; por um momento ele teve vontade de voltar e
ajudá-lo, mas logo desistiu da idéia, se Phyros desmaiasse Alam não teria força
para arrastá-lo para fora da casa em chamas; ademais, ainda temia que aquilo
não passasse de um embuste, uma armadilha apelando para o lado sentimental do
arauto que estava aflorando como nunca antes. Donovam provavelmente tinha
conversado com o gigante e dito sobre o “ponto fraco” de seu aluno. A bondade.
Quando saiu da casa, correndo pela porta
da frente e tossindo incontrolavelmente; Alam foi rapidamente recebido por
Adalberto Ramos que correu ao seu encontro e o abraçou. O corpo do rapaz estava
quente como se ele próprio possuísse uma temperatura corporal superior a
quarenta graus.
_Graças a Deus!_ disse Adalberto deixando
escapar um suspiro de alívio.
As roupas do ex-mago estavam sujas de
cinzas, fuligem, sangue e suor; assim como o rosto dele, e antes que ele
respondesse ao que Adalberto disse; a filha e a esposa do dono da casa chegaram
correndo e o abraçaram também.
Eliana chorava e soluçava, e a mãe da moça
acompanhava o marido em seus agradecimentos a Deus.
_ Estou bem; vamos sair daqui._ respondeu
finalmente Alam.
Poucas vezes Alam tinha se sentido tão
querido em sua vida.
_Onde está o outro? Perguntou Adalberto.
_Está lá dentro; não sei o que ele está
tramando, mas vamos sair daqui agora mesmo.
Joana interpelou:
_Para aonde nós vamos?
_Para a minha casa.
Eliana tentou se controlar e perguntou com
a voz embargada misturada ao choro:
_Mas e quanto a nossa casa? E quanto ao
intruso lá dentro?
_ Ele não vai poder fazer nada; a única
coisa que ele queria aqui era a mim e de alguma forma punir vocês pela ajuda
que me deram_ Alam começou a andar na direção de seu carro que estava parado
frente ao jardim da casa e puxava levemente tanto a Eliana quanto Adalberto e
dona Joana os acompanhava, enquanto falava._ Vamos para minha casa e ficar lá
até amanhã, no caminho ligamos para as autoridades e assim que eles vierem
aqui, controlarem o incêndio e verificarem que não há mais perigo no lugar
então voltamos.
Eliana insistiu:
_ Mas e se eles encontrarem aquele homem
lá em casa? Se é que aquilo é um homem.
Alam respondeu:
_Não vão encontrar; Phyros não pode se dar
ao luxo de ser preso ou detido por qualquer autoridade, e não é tolo de
confrontá-los, afinal, os policiais usam armas e tudo que ele tem e o domínio
do elemento fogo.
Alam passou a mão na calça desprendendo
uma chave que pendia do cinto presa dentro de um pequeno invólucro de chumbo,
destravou o carro desligando o alarme da Mercedes, abriu a porta o mais rápido
que pôde e entrou. Os outros entraram tão rápido quanto ele; Eliana e sua mãe
nos bancos traseiros e Adalberto no banco ao lado do motorista.
O carro saiu em velocidade rumo a
residência do arauto. No caminho seus ocupantes sentiram o silêncio pesado e
brutal até que Eliana percebendo e se sentindo incomodada com aquilo disse:
_ E se ele morreu?
_Quem?!_disse Alam.
_ Aquele homem. E se ele morreu lá em casa
consumido pelo fogo ou sufocado pela fumaça?
Antes que Alam pudesse dizer qualquer
coisa, o pai de Eliana se interpôs:
_ Se as autoridades encontrarem o corpo
daquele homem em nossa casa, então diremos a verdade; diremos que ele invadiu
nossa casa, nos amarrou e pôs fogo em tudo e diremos também que se não fosse
Deus ter enviado Alam até lá para nos ajudar eles encontrariam quatro corpos ao
invés de um.
O motorista sentiu o coração doer quando
imaginou a cena. Mas não disse nada.
Eliana se calou.
Mas a mãe dela trouxe um novo
questionamento:
_ O que faremos em seguida; será que
teremos de nos mudar para que estas pessoas do mal não voltem para nos punir
sabe Deus pelo quê. Não fizemos nada de errado.
Alam sentia-se tão culpado que mal
conseguia falar; a vergonha dominava seus pensamentos e novamente foi Adalberto
quem respondeu:
_Vamos deixar que o futuro aconteça quando
tiver que acontecer, Deus vai tomar todas as providências, se tivermos de nos
mudar então nos mudaremos; o que tem demais nisso? Tudo que havia em nossa casa
pode ser comprado novamente, trabalharemos duro como sempre fizemos, somos uma
família e ser uma família é estar unido principalmente em momentos como este.
Tudo vai dar certo.
Adalberto virou-se para trás e segurou a
mão de sua esposa, em seguida a de sua filha e disse:
_ Vai dar certo.
Depois virou para frente e colocando a mão
no ombro de Alam disse:
_No que me diz respeito, você é parte
dessa família também, não estou falando de laços de sangue, mas sim de laços de
amor. Sinto-me responsável por você desde que te tirei do rio.
O arauto dirigia tentando segurar as
lágrimas, e sentiu as mãos de Eliana e dona Joana também repousarem em seus
ombros. Naquele momento ele decidiu que aquela família tão diferente de todas
que ele já tinha conhecido não precisaria se mudar e nem teria prejuízo algum
em suas vidas. Alam decidiu que iria procurar Cortez e apoiá-lo para colocar um
fim nos planos de Donovam; sabia que Cortez não queria sua morte, queria apenas
vencer abertamente a política de Donovam para ser elevado a um maior nível de
honra e prestígio.
Além disso, Alam decidiu que podia muito
bem comprar tudo o que aquela família precisasse para sua vida seguir como
antes e os presentearia com muito mais, como uma retribuição da bondade que
mostraram para com ele.
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