Pela manhã, algumas horas depois do sol ter surgido, todos já
estavam de pé. Adalberto e Joana não quiseram comer nem beber nada, embora Alam
tenha insistido para compartilhar o desjejum; no fundo ele podia entender,
afinal tinham perdido a casa ou parte dela e estavam querendo voltar logo para
lá e resolver as coisas para dar prosseguimento na vida. Eliana tomou um café
com leite, tinha vindo do Brasil a menos de quarenta e oito horas e gostava
muito da clássica bebida consumida aos montes em sua terra natal.
Alam dirigiu levando todos eles até a casa
que agora estava cercada com uma faixa formando um perímetro, algumas pessoas
estavam ao largo da faixa olhando a ação dos bombeiros e autoridades que já
tinham tomado parte das medidas cabíveis. O jovem deixou a família Ramos num
local próximo do lugar e disse que não ia até lá com eles, mas os encontraria
mais tarde.
_ Aonde você vai? _ perguntou Eliana.
_ Vou tratar de cuidar para que nada disso
volte a acontecer.
_ Você vai encontrar Seu professor? _
disse Adalberto descendo do carro.
_ Não; Vou atrás de Juan Cortez primeiro,
e se tudo der certo ai então penso no outro.
Quando Adalberto bateu a porta Alam disse:
_ Eu volto para ajudar no que for preciso.
Ao deixar aquele local, ele dirigiu pela
cidade até chegar ao hotel onde Cortez geralmente ficava hospedado; o Novotel
Ottawa. Uma magnífica torre no centro da cidade, com mais de duzentos e oitenta
quartos, salas para eventos e encontros de negócios, bares e restaurantes,
piscina interior aquecida e muito mais. Um lugar onde bom gosto, requinte e
sofisticação confluem e de onde Juan podia orquestrar todos os seus passos com
máxima cautela.
No salão principal do hotel Alam logo ao
entrar teve uma surpresa grande; viu sentado em uma das poltronas luxuosas que
existem espalhadas pelo lugar para dar mais comodidade aos hospedes, Devon
Clarky, lendo uma revista e totalmente distraído de tudo ao seu redor.
Alam passou ao longe tomando o cuidado de
não entrar no campo visual de Devon e dirigiu-se até o balcão de hospedagem
onde uma atendente devidamente uniformizada num traje azul marinho veio falar
com ele.
Após se informar com a atendente de em que
andar e quarto Cortez estava hospedado, Alam sentou-se num dos cantos mais
afastados e recolheu um exemplar do jornal Ottawa Citzen que estava colocado em
uma mesa próxima; dali ficou observando Devon à distância. Gostaria de saber o
que ele estava fazendo ali, mas já tinha a resposta; Devon deveria estar ali
acompanhando algum “lacaio” de Donovam, mas quem?
Cerca de vinte minutos depois outro
“ex-irmão” apareceu, mas não era um ex-irmão comum, era o próprio Vesúvio. Ele
saiu imponente logo que a porta do elevador abriu, vestido em um terno negro
com a sua característica gravata vermelho sangue e sapatos italianos.
O arauto escondeu a face por trás do
jornal para não ser visto, mesmo num saguão tão grande e movimentado quanto
aquele, mas Alam não sabia ao certo quantas pessoas sob as ordens dos vermelhos
podiam estar ali.
Vesúvio não falou com Devon ao sair, pelo
contrário, pareceu nem mesmo tê-lo visto; passou ereto como um diplomata e saiu
cruzando a grande porta de vidro com os emblemas do hotel.
Devon fechou a revista olhou em redor,
retirou um telefone do bolso e rapidamente fez uma ligação; não falou muito,
levantou-se ainda com o aparelho na mão e dirigiu-se para a saída.
Alam teve um pouco de receio em se
levantar, ficou olhando todas as pessoas que passavam pelo saguão, procurando
algo que pudesse identificar ou denunciar um possível membro da irmandade; um
broche, um cordão, um anel, um emblema no paletó ou qualquer pequeno vestígio
deste tipo, mas não viu nada semelhante. Pensava que Devon não poderia estar
fazendo a segurança de Vesúvio, pois não era membro da ordem, a menos que a
visita do mestre não fosse algo oficial. Talvez Vesúvio tenha visitado o
espanhol, mas não quisesse que ninguém ficasse sabendo, a não ser Donovam.
Parecia isso, mas um pensamento atordoante
cortou sua primeira linha de raciocínio; Talvez Devon estivesse ali tão
incógnito quanto Alam e observando o professor sem que este o soubesse; mas por
quê?
Alam finalmente levantou e rumou para o
elevador, cruzou o saguão ainda olhando para todos que podia, mas procurando
não levantar nenhuma suspeita de insegurança; tomou o elevador e esperou até
que este o levasse para o andar de Cortez; era o único dentro do elevador que
não estava trajando terno completo.
Ao chegar no andar de destino, caminhou
pacificamente pelos corredores procurando o apartamento correto. O hotel
respirava luxo em todos os detalhes e o jovem lembrou-se de como ele próprio
costumava ficar hospedado em lugares como aquele sempre que viajava. Finalmente
encontrou o apartamento, com a porta encostada.
_ Juan._ Chamou Alam batendo com o nó do
dedo contra a porta que se moveu levemente para trás, abrindo-se.
Não ouve resposta alguma vindo do interior
do apartamento, Alam chamou novamente. Nenhuma resposta; de repente um barulho
esquisito brotou do interior do apartamento, baixo, algo como um murmúrio, um
gemido. O arauto empurrou a porta e entrou, caminhou pelo lugar até encontrar
Cortez caído junto à porta do banheiro; estava desfigurado pela força que fazia
para pedir socorro, os olhos injetados, a voz não saía; algo muito errado
estava acontecendo ali e Alam sabia que Vesúvio tinha ligação com o fato.
Olhando rapidamente ao redor ele viu uma
taça caída no chão a poucos metros de Cortez e sobre uma mesa mais ao longe uma
garrafa de vinho com outra taça ao lado. Instantaneamente um pensamento lhe
veio à mente:
“Veneno”.
Alam correu até o frigobar localizado na
sala ao lado e voltou com outro copo, passou por cima do homem no chão, que já
estava ficando sem os sentidos, e entrou no banheiro; lá procurou um pote de
sabonete líquido e o encontrou no armário atrás do espelho, derramou o sabonete
líquido dentro do copo até a metade e completou o resto com água. Puxou Cortez
para dentro do banheiro e ao fazer isso percebeu que ele já estava sem os
movimentos do corpo.
Dependendo do veneno que Vesúvio tivesse
usado e da quantidade que Cortez tivesse ingerido, aquele composto de sabonete
com água poderia ainda ter tempo de produzir vômito e salvar-lhe a vida; torceu
para que não fosse tarde; aqueles minutos a mais que ele passou no saguão
procurando outros membros da ordem poderiam ser a diferença entre a vida e a morte
do mago espanhol.
Alam abriu a boca do homem deitado e
despejou a bebida preparada às pressas, muito do líquido escorreu pela face do
moribundo, mas ele engoliu quantidade suficiente para causar revolta em seu
estômago. Cortez teve uma crise de tosse quase que instantaneamente e logo
colocaria todo o conteúdo do estômago para fora; Alam arrastou-o para dentro do
chuveiro e abriu a água, em seguida correu até o quarto e recolheu toalhas,
passou novamente pela outra sala e revirou o que pode até encontrar uma mala de
primeiros socorros; nela, ao abrir lançou mão de um pequeno pode de álcool.
Voltou ao frigobar e retirou uma bebida para desconfortos estomacais,
efervescente em pó. Nestes hotéis geralmente não se coloca nos quartos uma
garrafa de álcool, mas sempre se deixa um pouco numa daquelas maletas
providênciais de primeiros socorros para qualquer eventualidade.
Voltou para o banheiro e Cortez já tinha
vomitado, felizmente o conteúdo fora levado pela enxurrada produzida pelo
chuveiro aberto; havia um pouco de sangue escorrendo pela boca de Juan. Alam
desligou o chuveiro e destampando o frasco de álcool passou próximo do nariz
dele.
Cortez piscou algumas vezes, seu corpo não
estava mais tão rígido quanto havia estado momentos atrás, Alam o recolheu do
chão e o carregou até a cama do quarto, lá ficou esperando que o veneno não
tivesse sido assimilado pelo corpo em grande quantidade.
Enquanto Cortez se recuperava, o jovem
lavou o copo que usara para ministrar o antídoto caseiro e derramou água,
misturando com a bebida efervescente; feito isso, deu ao outro.
_ O que houve aqui?_ perguntou Alam assim
que notou que o outro já estava respirando melhor.
Cortez se recostou na cama e respondeu:
_ Vesúvio esteve aqui. _ O espanhol estava
encharcado.
_ É, eu o vi lá em baixo. O que ele queria?
_ Provavelmente queria me matar. Ele veio
com uma história de que Donovam havia procurado por ele e revelado a intenção
de mandar alguém me eliminar. Eu só não podia saber nem imaginar que era ele
mesmo quem faria o serviço, pensei que mandariam o carrasco ou até mesmo alguém
da guilda dos assassinos.
Alam sentou-se na cama.
_Que veneno foi esse que ele me deu? Não
podia desconfiar, fui eu quem pediu o vinho junto ao serviço de quarto, não me
descuidei nem um minuto.
_ Agora Vesúvio vai pensar que você está
morto, ao menos por algumas horas; não tenho dúvida de que Donovam o está
manipulando de algum modo.
_ Nunca pensei que fosse ver um mestre
como Vesúvio assim tão desesperado.
_Você está bem realmente?
_ Sim é claro, só um pouco tonto e com
dores no abdômen.
Alam balançou a cabeça negativamente; como
podia ter convivido tanto tempo com um monstro como seu antigo professor, um
homem sem o mínimo de amor à vida de seus iguais, aquelas pessoas não eram
apenas magos, eram seres humanos; estavam vivendo uma vida de engano e cegueira
tal como o próprio Alam também havia experimentado durante dez anos.
_ O que você está fazendo aqui_ inquiriu
ao jovem.
Alam jogou uma tolha sobre ele.
_ Eu vim aqui para terminar algo que
comecei na torre vermelha. Vou confrontar Donovam abertamente.
A face de Cortez, mesmo um pouco abatida
ainda iluminou-se com a notícia.
_ Então você vai me ajudar? Vai me apoiar
contra a unificação?
_ Não. Não vou tomar parte alguma em nada
disso, estou fora, sou uma nova criatura, nada sobre a ordem me diz mais
respeito.
_Você sabe que não é assim tão simples não
sabe?
_ Sim eu sei, e por isso vim aqui.
Cortez finalmente pegou a toalha e passou
sobre o rosto molhado.
_ Foi mesmo uma grande sorte você vir aqui
nesse exato momento, alguns minutos mais tarde e eu teria sido vitimado pelo
plano de Vesúvio.
A palavra sorte que foi usada pelo mago
não soou tão bem aos ouvidos do arauto, algo tinha acontecido com ele e sua visão,
a maneira como ele encarava todas as coisas estava mudando radicalmente.
Ele disse:
_Onde você vê sorte eu vejo providência.
_ Você se tornou mesmo um religioso
agora?_ perguntou em tom de brincadeira.
Alam não respondeu e mudou rapidamente o
rumo da conversa.
_ Donovam enviou o carrasco para me
eliminar nesta madrugada, ele incendiou a casa de meus amigos; ora, são uma
família decente, não merecem nada do que lhes está acontecendo.
_ “C’est La Vie”_ Disse Juan; tossiu em
seguida.
O semblante de Alam decaiu, ficou sério,
acima do normal. Ele iniciou:
_ Quero que você prometa uma coisa; quando
Donovam cair e Vesúvio for preso, todos os magos vermelhos vão saber que as
idéias fomentadas por eles não eram suficientemente boas para se sustentar,
logo, vão se lembrar da pessoa que levantou a bandeira em oposição, vão se
lembrar de quem teve coragem para manter idéias contrárias; vão se lembrar de
você. Seu nome vai ganhar prestígio e você conseguira tudo o que tem sonhado
durante todos estes anos de caminhada.
Juan Cortez concordava com a cabeça,
visualizando aquele momento glorioso em sua imaginação.
Alam continuava:
_ Daí em diante, não importa o que
aconteça; prometa que de sua parte vai esquecer a mim e as pessoas próximas a
mim. É só o que eu peço.
Juan ponderou por um momento e antes que
pudesse dizer qualquer coisa, Alam interveio.
_ Lembre-se, eu salvei sua vida.
Muita coisa poderia acontecer caso Donovam
e Vesúvio saíssem da cena política da ordem, de fato, tudo seria modificado; a
linhagem de maior prestígio na América do Norte seria esfacelada. O afastamento
do arauto, a prisão de um dos mestres mais renomados do último século e a queda
de Donovam, o maior expoente e articulador de que se tinha notícia na última
década.
_ A casa dos Dragões do Norte finalmente
vai ser riscada do mapa._ Disse Cortez com uma certa alegria transparecendo-lhe
na face. _Finalmente depois de tanto esforço serei recompensado.
_ Prometa para mim.
O espanhol não pestanejou; se era para
conseguir o objetivo de sua vida e de quebra ainda ser o responsável pela queda
da maior linhagem dos últimos tempos ele faria qualquer coisa.
_ Eu prometo._Disse finalmente._ Mas como
você pretende fazer tudo isso acontecer?
_ Primeiro você vai denunciar Vesúvio às
autoridades competentes pelo que ele tentou fazer aqui. Vai denunciá-lo também
ao conselho dos outros mestres e deixar que as coisas se encaminhem. Eu vou
testemunhar se for preciso, em ambos os casos.
_ Faremos o mesmo contra Donovam?
_Você fará; eu terei de confrontá-lo para
acabar com isso de uma vez; terminar a batalha da torre vermelha.
De qualquer forma já estava bom para
Cortez, o simples caminho que as coisas estavam tomando já era o suficiente
para que ele mostrasse a todos que sua vertente da ordem era muito mais
preparada para governar do que a outra, mesmo sendo mais nova, mas se Alam
queria confrontar Donovam, isso tornaria o espetáculo ainda melhor; só o que
importava era conseguir o objetivo final; lembrou-se de Nicolau Maquiavel; “Os
fins justificam os meios”. Nunca antes aquela frase tinha feito tanto sentido
para ele.
_ Você sabe que se confrontar Donovam
usando magia, o risco é grande de as coisas acontecerem como da última vez.
_ Não vou usar magia, não sei como vai
ser, mas sei que vai ser.
_O que exatamente aconteceu com você? Você
perdeu sua fé na ordem, nos dogmas antigos e na doutrina de uma hora para outra?
Agora foi Alam quem ponderou antes de
responder, não tinha nada pensado que pudesse suprir aquela indagação, mas
disse o que veio a cabeça.
_ Eu simplesmente quero viver em paz.
A imagem de Eliana veio instantaneamente à
memória do rapaz, assim como os minutos de agonia no rio Rideau quando caíra da
torre e lutava para permanecer vivo vencendo a correnteza fria.
_ Vamos. Vista-se e vamos dar início ao
fim.
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