_Obrigado por me receber_ disse Donovam
tomando assento.
_Já é tarde Draek; amanhã tenho reuniões
importantes, você tem meia hora.
Estavam na casa de Vesúvio; uma verdadeira
mansão, muito bem localizada, porém bem longe do centro de Ottawa.
_Quero lhe pôr a par das coisas que estão
acontecendo._ Eventualmente eles se encontravam para trocar informações,
geralmente os encontros se davam em horários pouco usuais, sempre na casa de
Vesúvio que por ser o antigo tutor, possuía a responsabilidade de continuar
dando conselhos ao seu outrora aluno, muito embora este houvesse alcançado um
alto grau de autonomia de forma que já não precisava mais se reportar ao seu
ex-tutor.
A sala na qual estavam sentados era uma
espécie de escritório pessoal onde o velho mentor de Donovam tomava decisões
importantes sobre sua vida e também sobre os assuntos relativos a ordem. Era um
homem de negócios e possuía uma vida profissional muito intensa, era dono de
duas empresas, mas nenhuma delas em solo canadense, entretanto estava
intermediando a implantação de uma filial em Ottawa; foi ele quem ensinou a Draek
os segredos de ser um empreendedor de sucesso e ainda ganhava muito dinheiro
dando palestras e conferências a esse respeito em várias cidades e países. No
mundo empresarial Vesúvio era uma lenda, claro que ele não usava seu nome
místico para tratar dos negócios do cotidiano e sim o nome que constava em sua
documentação comum; poucos do seu círculo social sabiam sobre a ligação dele
com a ordem.
Vesúvio não morava ali todo o tempo,
dividia seu ano em duas temporadas, passava seis meses no Canadá e os outros
seis meses passava em sua cidade natal; Nápoles, na Itália.
_Antes de falar qualquer coisa
responda-me. Já resolveu o problema com seu aluno?
_Estou cuidando disso neste exato momento.
O carrasco está no comando de todo o processo.
O velho sorriu.
_Confesso que sempre tive curiosidade de
saber se eu era capaz de moldar outro aluno do mesmo modo que moldei a você.
Sempre acreditei que ter tido você como aluno foi um acontecimento único e que
não se repetiria, não há outro tão astuto e tão preparado para tomar meu lugar
quando chegar o momento.
Agora foi Donovam quem Sorriu.
Vesúvio continuou:
_Foi quando encontrei Phyros, um homem tão
forte que por vezes até tenho receio de perder o controle sobre ele, se por um
único momento ele soubesse do potencial que possui, da força que há dentro
dele, da fúria incontrolável que queima dentro daquele coração. Tornaria-se um
nômade e não respeitaria a mestre algum; ele me lembra você, em alguns aspectos.
_Mas ele tem a força e eu tenho a
inteligência e a magia._Disse Draek de modo seco.
_ De fato. Vocês são como duas partes do
mesmo homem. Se eu pudesse escolher, vocês dois seriam uma só pessoa, o mago
perfeito, constituído de ambição na medida certa, força física invejável,
disciplina mental e conhecimento das tradições da ordem; com pulso firme o
suficiente para conduzir os magos do fogo para a tal unificação global que você
tanto sonha. Seriam mais do que um mago perfeito; seria um regente perfeito.
_Sinto-me honrado_ Donovam estava dando
tempo ao tempo, fora para aquele encontro com um propósito no coração e estava
aguardando o sinal para poder agir.
_Como o arauto._ Vesúvio afirmou,
concluindo_ Seu aluno é exatamente essa pessoa, ele reúne as características de
Phyros e você, ele se importa com a ordem, se importa o suficiente para morrer
por ela; e talvez, de todos nós, ele seja o único realmente capaz desse
sacrifício. E ele tem a única coisa que vocês não tem.
Donovam não gostava de ser comparado com
ninguém, a menos que fosse para o elogiar, e aquelas palavras deixavam-no
desconfortável, mas ainda não era a hora de fazer o que tinha proposto.
_ E o que seria? O que meu ex-aluno tem
que eu não tenho?
_Um coração.
Um pequeno silêncio se fez presente e os
olhos dos dois permaneceram fixos um no outro.
_ O que você quer dizer com isso? _
Donovam sabia exatamente o que seu mentor queria dizer, mas fez a pergunta sem
perceber; Alam era exatamente isso; um homem com força de vontade, força
física, que conhecia a magia, controlava seus sentimentos e não permitia que
eles o dominassem, além de tudo isso, ainda possuía coração. Alam se importava
com as pessoas e foi isso o que começou a incomodar Donovam.
Aquela afetividade e compaixão que por
vezes fez o aluno questionar as ordenanças do mestre e que acabaram culminando
no episódio que ficou conhecido como a batalha da torre vermelha; onde eles se
enfrentaram violentamente; nunca antes um aluno tinha resistido ou desafiado
tão abertamente a autoridade de seu superior como ocorreu naquele momento. O
incidente já tinha atravessado o mundo, membros da ordem radicados nas mais
diversas partes do globo ficaram sabendo do fato e cada casa interpretou de um
jeito diferente. Algumas acharam que era a maior quebra de hierarquia já
demonstrada e por isso Alam deveria pagar com a vida, estes logicamente
partidários da unificação de Donovam; outros achavam que realmente já era hora
de alguém confrontar o temido dragão com suas idéias loucas de unidade, e houve
ainda os que acharam interessante, mas não tomaram partido, esperariam os
próximos movimentos no tabuleiro do jogo para então definir o que fazer. Uma
coisa era certa, estavam diante de uma crise poucas vezes vista.
_Um coração?_ perguntou Dom.
_Sim; sentimentos. Um líder que sente, é
um líder que vê além da matéria.
_ A ordem não foi construída sobre pilares
tão frágeis como sentimentos, do que você está falando? Misericórdia, perdão,
amor? Ora, não me faça rir. Nós nos tornamos essa grande força no mundo às
custas de ferro, fogo e sangue; filosofia é importante, mas nunca venceu uma guerra
sequer; psicologias têm seu lugar, mas serve apenas para formar burocratas.
Você me deu tudo isso, mas eu desenvolvi o instinto, sou eu quem vai guiar a
ordem por um caminho novo e teremos que passar por cima de pessoas no caminho;
faz parte da evolução.
_ Não estou falando disso, estou falando
que você está disposto a passar por cima de seus aliados apenas por não
concordar com eles, isso pode fazer com que eles se tornem seus inimigos, o que
dentro de nossa realidade é muito provável que aconteça; você não sabe ou não
está disposto a manter alianças ainda que sejam incômodas, mas que redundarão
num maior número de partidários a seu favor; Alam sabe fazer isso e por mais
que me doa falar, Cortez também sabe.
As características que Alam possuía sempre
foram notadas por todos; as casas distintas que residiam em Ottawa nunca
aceitaram conversar sobre as idéias utópicas de unificação com Donovam, porém,
com Alam não só conversaram como rapidamente aceitaram a proposta. A visão do
arauto era diferente da que tinha seu mestre, o peso era muito menor. Donovam
sabia disso e como Alam já não aceitaria ajudá-lo, ele não voltaria atrás em
seus intentos, só restava denegrir a imagem do aluno e matá-lo como um traidor.
Donovam estava ficando sem tempo, quanto
mais ele demorasse para eliminar o arauto, mais a notícia da cisão entre eles
correria o globo; magos de todas as partes chegariam a conclusão de que se ele
não conseguiu um acordo com o próprio discípulo, como poderia querer unidade
com outros magos tão diferentes.
_É exatamente sobre isso que quero tratar
com você. Cortez pensa que pode me confrontar, mas não pode. Estive conversando
com a liderança dos assassinos, tive de agir de forma não ortodoxa, mas acho
que agora eles vão me obedecer.
Aquilo espantou a Vesúvio.
_ O que você fez, matou algum líder deles?
Ambos sorriram.
_Digamos que fui obrigado a ser enérgico.
De repente o telefone de Donovam tocou,
ele atendeu imediatamente, interrompendo a conversa, pois já estava esperando a
ligação. Era Devon Clarky. A notícia passada por Devon animou-o e era aquele o
sinal que estava esperando para colocar em prática a outra fase do seu plano.
_ Quero lhe pedir uma coisa; Dê um jeito
em Juan Cortez.
O pedido já não pareceu espantar o velho
mago e ele limitou-se a perguntar:
_ Por quê?
_Cortez fala demais, e mesmo não
representando grande ameaça aos meus planos agora, em longo prazo, acabará
inflamando facções indecisas da ordem; ele é um bazófio oportunista, quer se
aproveitar do fato de que minhas idéias não são de todo aceita pelos mestres
vermelhos para fazer seu nome e ganhar fama como “O mago que provou que os
planos de Donovam Draek estavam errados”. Mas eu não vou permitir.
_ E o que você sugere?_ Vesúvio não
gostava dessa idéia, embora conspiração sempre fosse uma palavra chave por trás
da magia; assim ele próprio tinha galgado os degraus até o posto no qual
estava, e, de fato, tinham, ele e Donovam construído um nome muito sólido e de
muito prestígio dentro das casas de estudo da magia. Todos sabiam quem eram;
seus nomes figuravam nas paredes de alguns lugares públicos ao redor do mundo,
escritos em linguagem enigmática para que somente magos soubessem que o lugar
era visitado por irmãos de confraria.
Juntos estavam construindo uma dinastia
que impunha respeito até em magos de outras escolas; três gerações, Vesúvio
mestre de Donovam Draek, o dragão, e Draek mestre do arauto. No último século
não se levantou linhagem mais promissora e com tamanha presença quanto esta.
O fato era que as palavras de Cortez
tratavam de divulgar a briga entre o arauto e seu mestre, isso lançava grande
desconfiança, principalmente no lado europeu da ordem, onde Juan detinha muitos
contatos, sobre a solidez das idéias do dragão e por efeito dominó acabava
obumbrando a imagem que a linhagem de Vesúvio levou praticamente meio século
para criar.
Donovam continuou:
_Cortez nos põe à prova, nos insulta, nos
faz parecer tolos diante daqueles que não nos conhecem pessoalmente. O que
tramará em seguida se ele continuar ganhando terreno? Vê os incêndios
noticiados pela televisão na ilha de Córsega, na Grécia e em pontos distintos
da Espanha? É claro que já sabe o que significam.
O semblante de Vesúvio decaiu de
sorridente para grave instantaneamente; tais incêndios representavam um sinal,
os magos radicados na França, na Espanha e na parte meridional dos Balcãs
estavam respondendo aos discursos de Cortez e o fogo sinalizava a não
concordância com a vertente da unificação.
Donovam asseverou:
_ O mundo todo viu estes noticiários,
obviamente nossos irmãos na França e na Espanha vão acabar se agrupando aos
partidários do mago espanhol, não por concordarem com ele e não conosco, mas
pura e simplesmente por enxergarem a possibilidade de criar um movimento de
resistência que pode ter sérias consequências e desdobramentos.
Caso isso aconteça, os mestres vermelhos
terão que se reunir e votarão por alguma medida que me impeça de concluir meus
planos, nem eu poderei ir contra todos os mestres. Caso Cortez continue inflamando
a irmandade dessa forma, e se as massas exigirem uma decisão do conselho dos
antigos, serei considerado uma ameaça para o bem estar da ordem, apesar de tudo
o que já fiz e você de igual modo cairá comigo.
O semblante do velho mago decaiu novamente
de grave para fechado.
_Eu! Não tenho nada a ver com isso. São
suas idéias, não minhas.
Donovam se levantou calmamente passando a
mão sobre o queixo.
_ Na visão dos mestres antigos e do
próprio espanhol, pode parecer que a filosofia da unificação seja mais um plano
bem arquitetado pelo lendário Vesúvio, e que eu por ser seu aluno esteja
somente cumprindo suas determinações.
_Isso é loucura, nunca mandei que você
fizesse coisa alguma com relação a esta sandice.
Donovam riu:
_ Você é suficientemente esperto para tentar
tomar o poder das mãos dos antigos sem ter que ir para a linha de frente, assim
teria me tutelado para fazer o trabalho sujo. Se eu conseguisse, então você
subiria ao trono e eu seria apenas seu braço direito.
_Ora! Isso é uma sucessão de mentiras._
Vesúvio estava visivelmente incomodado com aquelas implicações mesmo sabendo
que nada daquilo era verdade.
_ Diga-me. Quando eu conseguir a
unificação você não vai querer fazer parte dela?_ perguntou Dom.
Vesúvio parou um momento, ponderou; é
claro que gostaria de fazer parte de uma ordem unificada, principalmente sob
uma bandeira que era sua também.
_ Sim é claro._Respondeu.
Donovam permitiu-se um leve ar de
felicidade.
_ Pois bem; porque no meu império só há
dois tipos de pessoas; os que estão comigo e os que estão contra mim.
A filosofia da unificação sempre foi uma
obsessão de Donovam e Vesúvio entendia que seu aluno arrogante já deveria ter
tomado todas as precauções para não cair sozinho se este fosse o caso. Estava
se tornando um prisioneiro de seu pupilo.
_ O que você quer que eu faça?_ disse
finalmente se rendendo a teia tecida pelo inescrupuloso aluno.
Nunca poderia pensar que Donovam fosse
usar sua falta de compaixão contra o homem que o tinha criado, mas no fundo
sabia que aquilo um dia poderia acontecer; tal como o próprio Vesúvio fizera no
passado com seu próprio tutor. Nos círculos de magia essa era a única forma de
se chegar ao poder.
_ Tire Cortez do caminho.
Vesúvio estava agora sem expressão alguma
na face, vencido pela inteligência do dragão.
Finalmente, após dizer, ordenar, que seu
mestre eliminasse Juan Cortez de algum modo, Donovam deixou a mansão com a face
iluminada pela sensação de vitória eminente que sentia em seu coração; estava
muito satisfeito com a situação montada e cria que em pouco tempo teria uma
definição favorável para seus intentos. Montara uma arapuca de três pontas
muito bem elaborada, numa delas estava Alam em seu confronto com o carrasco, na
outra, Cortez que teria o nome riscado dos livros da ordem e a vida riscada da
face da terra e por fim na terceira ponta estava o próprio Vesúvio que agora
estaria para sempre em suas mãos.
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