O dia estava tão corrido que Alam mal
estava tendo tempo de fazer aquilo que pretendia; combinou que voltaria para
buscar Cortez no hotel, mas antes resolveu ir até a casa ou o que restou da
casa da família Ramos; tinha algo em mente que devia fazer para que na sua
cabeça conseguisse de uma vez por todas se sentir livre de toda a influência da
ordem vermelha. O lugar ainda estava isolado e agora não havia mais ninguém lá
a não ser umas poucas pessoas passando pela rua e parando para ver como o fogo
tinha feito um grande estrago.
Ao parar o carro Alam contemplou parte do
que antes era a casa, mas que naquele momento parecia um esqueleto negro de um
dinossauro; uma estrutura enorme e bizarra; ele pensava em como Phyros teria
escapado do fogo e da casa já que os bombeiros não tinham encontrado nenhum
corpo em meio a toda aquela bagunça; mesmo sendo um homem capaz de comandar as
chamas como poucos, o carrasco não poderia resistir ao desabamento do piso
superior sobre ele, pelo menos era isso que Alam imaginava, mas não se
surpreenderia se por algum motivo estranho o carrasco também fosse dotado de
mais capacidade física do que as pessoas comuns. Havia o boato de que a
linhagem da família dele remontava a homens que no passado foram conhecidos
como nephilins.
Esta era uma história citada muito
superficialmente na bíblia e que o jovem conhecia muito bem mesmo antes de sua
conversão recente; Donovam tinha herdado parte da fixação de Vesúvio com
relação aos filhos dos anjos da antiguidade.
Nunca houve de fato uma prova que
comprovasse essa suposta linhagem familiar angelical de Phyros, mas também não
havia nada que negasse; podia ser uma espécie de marca ou mito criado pelo
próprio Vesúvio, atual mentor de Phyros, para incutir medo nos adversários. Uma
espécie de terror psicológico; muitos mestres usam deste artifício para que sua
fama ganhe mais volume do que realmente eles merecem, alguns pupilos também se
utilizavam dessa artimanha, e magos de todas as escolas ao redor do mundo
também se aproveitam desse exercício; ganham fama de sábios quando tudo o que
fazem e ficar de boca fechada em momentos cruciais. Aquela foi uma técnica que
o próprio Alam utilizou muito principalmente no princípio de seus estudos.
Portanto era muito provável que Vesúvio tenha criado a estória sobre a família
de seu novo aluno. O certo era que Alam não sabia.
Segundo o relato bíblico, um grupo rebelde
de anjos desafiou as regras da criação e contra todas as possibilidades
desceram à terra para procriarem com mulheres humanas; a prole desta relação
teria dado início a uma linhagem de homens acima do normal.
Mas nada naquela história servia para ele
naquele momento; desceu do carro e caminhou pelo terreno em frente da casa,
passou pela parte que estava isolada e foi para dentro do que um dia antes era
a porta de entrada. Móveis, utensílios e tudo o que existia ali fora consumido
pelas chamas; ele retornou, olhou as árvores próximas e elas estavam queimadas
também; pareciam-se com enormes garranchos carbonizados colocados sobre o solo
como uma obra de arte gótica da idade média.
O rapaz voltou e entrou na sala, procurou
por um bom tempo em meio aos escombros até encontrar a lâmina de sua espada,
cujo cabo foi destruído pelo calor; estava soterrada sob uma pequena montanha
de entulho, entre blocos de concreto queimado, revestimentos de madeira e uma
infinidade de outras coisas que ele não conseguia identificar. Após retirar a
lâmina que tinha adquirido uma tonalidade diferente, queimada, e parecia
mostrar um tom azulado misturando-se a cor de metal envelhecido; Alam recolheu
o que restou de sua espada, aquele objeto era um dos símbolos do arauto,
qualquer mago na cidade sabia disso e foi justamente por esse motivo que ele
resolveu se desfazer de sua preciosa lâmina japonesa; o cabo estava perdido já
não servia para nada, ele poderia muito bem recuperá-la por inteiro, conhecia
um excelente artífice ferreiro que por uma boa quantia em dinheiro a deixaria
nova em folha, mas isso não fazia mais parte de sua vontade.
Com a espada na mão ele saiu da casa e a
contornou, chegou até a área de trás do imóvel, um lugar muito amplo e com o
lago e a paisagem que juntos serviram para despertá-lo para a vida naquele dia
esquisito quando acordou na casa de pessoas que até então eram estranhas.
O lago tranquilo parecia uma folha
espelhada que em parte refletia o céu e em parte a luz do sol que a tocava, um
vento manso soprava fazendo apenas pequenas ondulações nas águas. Alam se
lembrou da antiga estória de Viviane, a fada, uma das sacerdotisas de Avalon
conhecida como A Dama do Lago citada na bela saga do Rei Artur, uma das
histórias mais conhecidas do mundo; ele mesmo possuía o livro que estava em
alguma das caixas em seu escritório ainda não montado. No conto, a fada era a
responsável por guardar e devolver nada mais nada menos do que Excalibur a
lendária espada do rei.
Exatamente por causa daquela estória foi
que Alam começou a se interessar pela arte do combate com espadas e
propriamente por elas, embora tenha preferido a lâmina japonesa pelo pouco peso
e rápida possibilidade de movimentação se comparada com outras.
Agora por uma ironia da vida ou uma
providência divina que ele não entendia, o conto avalônico estava novamente em
sua cabeça e ele, por sua vez, estava prestes a fazer como o personagem
principal do relato, arremessaria a lâmina para que o lago cuidasse de ser o
destino final dela.
Olhou bem para ela e depois com um
movimento rápido reunindo toda a força que pôde em seu braço, arremessou a
espada o mais alto e longe que conseguiu; a lâmina se fez ao ar e girou por
alguns segundos descrevendo uma trajetória que foi acompanhada do início ao fim
pelos olhos do rapaz. Por um momento ele se pegou realmente esperando que uma
mão feminina surgisse no lago e agarrasse a espada antes que esta pudesse tocar
as águas, mas logicamente nada disso aconteceu.
A arma caiu no lago levantando um pouco
d’água no local do impacto e perturbando momentaneamente a aparente calmaria
estabelecida ali, nada de fadas, sua vida já era repleta de coisas fora do
entendimento da maioria das pessoas e mais uma não faria diferença, mas gostou
de ter sentido aquela sensação infantil; sorriu. Poucos conheciam a real
história por trás de Excalibur, mas ele conhecia.
Segundo se dizia: Julio César, talvez o
mais conhecido imperador romano, mandou confeccionar uma espada em cuja qual
havia o nome “CESARS CALIBUR”, guardou esta espada por anos e quando morreu a
arma foi levada para um local desconhecido reaparecendo muito tempo depois para
ser presenteada a um rei, porém, por estar velha parte das letras estava
ilegível e somente “E” “S” “CALIBUR” mantinha-se visível; o tempo tratou do
resto, mas essa era uma longa história que Alam não tinha tempo para rememorar.
Voltou para a realidade que teimava em
mantê-lo preso, ainda tinha muito a fazer e agora sentia-se como se tivesse finalmente
se livrado de sua última ligação com os atos praticado ainda sob o comando da
antiga ordem; ficaria com a lembrança dos livros e das estórias, e esqueceria
todo o resto.
Voltando para o carro, enquanto caminhava
lentamente ele ligou para seu advogado e explicou parte do que tinha em mente;
estava começando a providenciar todo o necessário para doar uma grande quantia
em dinheiro para a família Ramos por conta da destruição do domicílio deles e o
advogado ia cuidar de tudo junto ao banco por meio de uma procuração, em
seguida, já dentro do carro, antes de dar a partida no automóvel ele também
telefonou para o gerente do banco e o colocou a par de suas intenções. Gostaria
muito de cuidar de tudo ele mesmo, mas tinha um longo e duro caminho para percorrer,
caminho este que passava por lugares que já não queria visitar, como o castelo
das labaredas e a torre vermelha; e que traria a seu encontro vários fantasmas,
Cortez, Phyros, Vesúvio e Donovam. Não seria nada fácil.
Um táxi parou na frente da casa, praticamente
ao lado da Mercedes de Alam e de dentro do táxi saíram Adalberto, Joana e
Eliana; estavam voltando da chefatura de polícia. Alam baixou o vidro da janela
e chamou por eles.
_ Ora! O que está fazendo aí?_ Perguntou o
Sr. Ramos enquanto Eliana pedia ao taxista que aguardasse.
_Vim aqui apenas para cumprir algo que
estava incomodando meu coração. Eu já estava indo até a delegacia para ver se
vocês precisavam de alguma coisa.
Ele abriu a porta e saiu novamente do
carro.
_ O que você fez?_Perguntou Eliana.
Alam explicou para todos eles o que tinha
acabado de fazer com sua espada, e como sentia-se muito melhor agora que já
havia se livrado da última amarra entre ele e seu passado.
_ Decidi renunciar tudo por completo, até
mesmo nos detalhes._ Disse o rapaz.
Joana tomou a frente e falou:
_ É uma sábia decisão esta, na vida existe
a certeza de que teremos de fazer escolhas e muitas delas vão representar
renuncias. O bom é que nossas escolhas sempre sejam motivadas por amor, pois,
com isso sempre haverá uma recompensa.
Naquele momento Eliana e Alam trocaram
olhares tímidos, mas foi o suficiente para que os pais da moça percebessem o
que estava começando a florescer entre eles.
O jovem aproveitou a deixa, sobre escolhas
e renuncias, dada por dona Joana e pensou nas escolha que aquela família tinha
feito ao acolhê-lo; já tinha ouvido eles falando a esse respeito mais não podia
evitar pensar nisso.
A partir daquele momento ele explicou
exatamente o que tinha acabado de conversar com o advogado e com o gerente do
banco; disse tudo sobre suas intenções de doar uma quantia considerável para
que a família pudesse se levantar novamente, reconstruir a casa ou até mesmo
comprar outra; comprar novos móveis e acertar eventuais dívidas que surgissem
no percurso.
No princípio a família relutou em aceitar,
mas Alam estava irredutível e bateu o pé quanto àquela situação, não permitiria
nem por um instante que eles pensassem que não teriam ajuda para dar a volta
por cima. Depois de muito insistir ele acabou convencendo a todos.
_Mas Você tem certeza de que quer fazer
isso?_ Disse Joana.
Adalberto entrou em seguida:
_ Não é necessário. Podemos cuidar de tudo
sozinhos, temos algumas economias para emergências e pode levar um tempo, mas
vamos nos reerguer.
Agora foi Alam quem falou para colocar um
fim, de uma vez por todas, naquele debate.
_ Tenho absoluta certeza do que vou fazer,
vocês vão receber o dinheiro que estou passando para suas mãos; isso vai tornar
muito mais confortável esse momento incômodo que por minha causa vocês estão
passando. Afinal, um homem não deve pagar por sua hospitalidade, e sim, ser
recompensado por ela; vocês foram muito hospitaleiros comigo mesmo sem me
conhecer e não serão prejudicados por isso.
Naquele momento, enquanto falava, ele se
lembrou de uma frase interessante que tinha lido no livro sagrado tempos atrás;
a frase era a seguinte:
“Não se esqueça da hospitalidade, porque
por ela alguns, hospedaram anjos, sem saber”.
Por fim o arauto explicou que eles deviam
ir até o principal banco da cidade e procurar por Brien LucGagnom, o gerente da
agência; Gagnom trataria de organizar todas as coisas para eles, era um homem
muito competente e já cuidava das finanças de Alam fazia três anos; esteve à
frente e com muita presteza, da compra da nova casa do rapaz e também do novo
carro, era uma espécie de viciado no trabalho, mas fazia tudo com muita
dedicação, de fato, era apaixonado pelo emprego e um bom amigo.
_ Mas e quanto a você? Por que não vai lá
conosco?
_ Já comuniquei a Brien e tudo já está
muito bem encaminhado, ele já sabe o que fazer; enquanto isso vou terminar com
mais algumas pendências que tenho para que nada do que aconteceu aqui com a
casa de vocês volte a ocorrer.
Eliana achou aquilo um tanto estranho.
_ Não vá se igualar a essas pessoas._ ela
pediu._ Você é melhor do que isso.
_ Fique tranqüila estou procurando fazer
as coisas da forma mais pacífica possível.
Ele não diria para não despertar
preocupação desnecessária, mas sabia que no fundo, o antigo professor queria
sua cabeça em uma bandeja de prata.
A família voltou para o táxi e rumaram
para a agência bancária indicada por Alam, eles não tinham idéia do valor total
que seria depositado na conta deles, nem ele quis revelar ali, esperaria até
que LucGagnom dissesse e ficou combinado também que ficariam em um hotel
relativamente próximo da igreja até que a situação fosse resolvida.
O valor total que seria recebido por eles
girava em torno de um milhão de dólares e Alam tinha pensado muito antes de
tomar aquela decisão, mas sabia que era o certo a fazer. Adalberto era um homem
com uma visão de mundo muito diferente das pessoas que ele conhecia, era uma
pessoa muito consciente de questões como civilidade, boa conduta, humanidade,
sociedade, unidade e educação; como a maior parte dos indivíduos canadenses,
mas havia no amigo uma coisa que de certo modo faltava nos demais; uma espécie
de amor fora do comum, um amor capaz de fazer com que ele abrisse mão de coisas
particulares e até mesmo de direitos que possuía para ajudar outras pessoas.
Havia também algo que Alam ainda não conseguia identificar, uma alegria
intrínseca no modo de viver daquele homem, os espiritualistas da ordem
chamariam de aura, mas ele sabia que não se tratava de uma mera aura; era algo
muito maior, muito mais forte, muito mais vivo e muito mais nobre.
O fato era que sem dúvida alguma Adalberto
e sua família não usariam todo o dinheiro em proveito próprio, era uma quantia
por demais grandiosa e certamente conhecendo a índole daquele homem, Alam
também sabia que parte da quantia seria destinada a instituições que
precisassem, e até mesmo em melhorias e ajudas para as pessoas da congregação
que ele dirigia. Não tinha dúvida, ajudar aquela família significava ajudar
várias outras famílias e justamente aquela sensação estava trazendo um
sentimento bom à alma do jovem; um sentimento de que agora sua vida estava
verdadeiramente valendo à pena. Esperava, no futuro, poder se dedicar um pouco
mais às boas obras, estava cansado de más ações, queria um pouco de redenção, além
do que, aquele jeito amoroso e abnegado que seus novos amigos tinham como
estilo de vida estava contagiando o coração e a alma de Alam; foi como se a
alma dele risse no momento em que viu o sorriso de Eliana quando esta soube que
obteria ajuda para reconstruir a vida.
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